Um
cântico evangélico que se tornou muito popular um tempo atrás inicia com a
seguinte frase: “Há momentos que, na vida, pensamos em olhar atrás / É preciso
pedir ajuda para poder continuar...”. As doenças psicossomáticas
tornaram-se verdadeira epidemia no século XXI e as indústrias farmacêuticas
lucram bilhões vendendo remédios paliativos que transformam milhões de pessoas
viciados dependentes desta medicação tudo isso com a complacência dos médicos
que os receitam.
Uma
exposição pessoal exponencial nas mídias tem alimentado o narcisismo das
pessoas, mas os efeitos colaterais podem ser visto no número de suicídios que
tem aumentado assustadoramente neste século cibernético em virtude da desilusão
e do vazio que estas pessoas sentem mesmo tendo milhares de “amigos” no
facebook e milhares de seguidores no instagram.
Para
aqueles que acusam as narrativas bíblicas de ser misoginia (do grego μισέω, transl. miseó, "ódio"; e γυνὴ, gyné, "mulher") ou “androcentrista” este capítulo inicial
de Primeiro Samuel realça o valor e relevância perene da mulher no projeto de
Deus. Ambas as histórias, da moabita Rute que antecede a história mais curta de
Ana, revelam o quanto a mulher é protagonista na realização da História divina.
Deus criou a mulher à sua imagem
semelhança porque sabia que sem elas não haveria História.
Ana
foi uma mulher que viveu em um período de transição da história israelita,
quando mudanças profundas e significativas aconteceriam – será estabelecido o governo
monárquico. Ela tinha um marido que a amava muito, mas não podia gerar filhos e
na cultura israelita que ela estava inserida a esterilidade era considerada
como um castigo divino. Deus havia prometido abençoar Seu povo com muitos
descendentes se eles obedecessem a Ele ( Dt 28.11 ), consequentemente, muitos
israelitas viram a incapacidade de uma mulher de ter filhos não apenas como uma
questão natural, mas também como uma maldição de Deus.
Para
complicar seu marido tomou uma segunda esposa (permitido pela cultura), mas em
completa desarmonia com projeto original de Deus. Penina a segunda esposa gerou
filhos e isso ampliou o sofrimento e humilhação de Ana. Essa situação durou por
anos e a cada ocasião festiva Penina fazia questão de expor publicamente a
situação humilhante de Ana, ainda que seu marido nessas ocasiões lhe desse uma
porção dobrada para ofertar, demonstrando desta forma publicamente seu amor especial
por ela.
Em
uma dessas ocasiões religiosa festiva toda a família sai de sua residência em
Rama e se dirigem até a cidade de Silo onde se celebrava a Deus e ali a família
oferecia suas ofertas e sacrifícios conforme a Lei mosaica. Mas o coração e a
alma de Ana contrastavam com todo aquele ambiente festivo. Vendo os filhos de
Penina e as demais crianças brincando, cantando e correndo por todos os lados,
contristava ainda mais seu coração e durante uma das refeições Ana optou por solitariamente
se refugiar no santuário e ali derramar todas suas ansiedades e tristezas declarando
sem qualquer subterfúgio toda sua insuficiência diante de Deus (Jó 3016; Sl 62.8;
Sl 142.2, Lm 2.19; Tg 5.16).
Ela
ora muito baixo (com o coração), pois quem deveria ouvir sua oração era o seu
Deus, mas o idoso sacerdote Eli esta ali observando a jovem mulher balbuciando
palavras e conclui equivocadamente que ela havia ingerido bebida fermentada
(vinho) logo no primeiro período do dia e se aproxima exortando-a com firmeza,
mas Ana explica sua situação ao ancião que se compadece dela e torna-se solidário
com sua triste situação e abençoa sua vida dizendo que Deus haveria de ouvir
aquela oração dela e quando ali retornasse o faria com uma criança em seus
braços. Uma narrativa que iniciara tão tensa e triste, agora se transforma em
motivo de louvor e gratidão. Um tempo na presença de Deus vale mais do que
milhões em conta bancária. Buscar a presença de Deus é muito melhor do que
buscar a compreensão das pessoas.
Vejamos o conteúdo da oração de Ana, pois ela se
constitui em um bom modelo de como podemos e devemos nos dirigir a Deus quando
o nosso coração e a nossa alma estão dilacerados pela dor e frustração e
precisamos pedir ajuda para poder continuar.
1
Samuel 1.9-18
A
oração de Ana é simples e objetiva, ela deseja um filho e sabe que somente Deus
é capaz de atender seu pedido, pois seu marido por mais que a ame não tem como ajuda-la.
Enquanto não nos esvaziamos de nós mesmos não somos capazes de orar
corretamente. Tão somente quando esgotamos todos os nossos recursos e tomamos
consciência de nossa completa insuficiência, haveremos de orar da forma
correta.
A
jovem mulher não dissimula seus sentimentos - estava sentindo uma profunda
angústia e chorava amargamente, enquanto fazia sua oração ao Senhor. Uma oração
que não envolva a alma e o coração torna-se uma sucessão de frases bem
elaboradas, mas destituída de vida. A genuína espiritualidade jamais está
desassociada de sentimentos igualmente genuínos. Os orientais sabiam muito bem extravasar
sua dor e sofrimento – Jacó quando recebe a “fake news” de que seu amado filho
José havia morrido, rasga suas vestes, cobre-se de saco e cinza e chora dias
afio sem querer receber consolo.
Ana
não esconde sua dor, sofrimento e humilhação pelo fato de não poder gerar um
filho e entre angustia e lágrimas ela faz sua oração. Ninguém é capaz de
entender completamente nossa situação do que o Deus que sonda mente e corações
e que conhece nossos dias antes mesmo de nascermos. Assim como Jó não
compreendia a razão e os motivos pelos quais ele e sua família passavam por tão
grande aflição, apesar de seu cuidado em fazer continua oferta diante do Senhor,
Ana também não conseguia entender por que ela não podia gerar um filho mesmo
sendo saudável e temente a Deus.
Ela
tinha diante de si duas alternativas: se deixar consumir completamente pela dor
e frustração ou se derramar diante de Deus em uma completa submissão à sua
vontade. A primeira alternativa certamente a consumiria até a morte, mas ao
optar pela segunda Ana abriu a porta da fé e esperança no “Senhor dos Exércitos”.
Este nome passou a expressar os infinitos recursos e poder à disposição de
Deus, enquanto Ele luta por Seu povo. Portanto, a oração dela é dirigida ao
Deus eterno que trouxe à existência tanto os céus como a terra; Ele é o Deus
que transforma o caos em algo maravilhosamente bom; Àquele que detêm todo o
poder nos céus e na terra; aquele que vence os inimigos mais implacáveis;
assim, Ana sabe que sua única esperança é recorrer ao seu Deus!
O
voto que Ana inclui em sua oração é extremamente significativo, mas precisa ser
entendido corretamente, pois ela não o faz em espírito de barganha ou qualquer
forma de pressionar Deus a atender sua oração. Há duas expressões na sua oração
que deixa sua submissão evidenciada - "Ó Senhor dos Exércitos, se tu deres atenção à humilhação de tua
serva, [se] te lembrares de mim e
não te [se] esqueceres de tua serva,
mas lhe deres um filho, então eu o dedicarei ao Senhor por todos os dias de sua
vida, e o seu cabelo e a sua barba nunca serão cortados" (1.11). Esse
triplo “se” (אִם) não denota qualquer dúvida ou exigência, mas reforça a certeza
e confiança dela no cuidado de Deus que tem seus olhos fixos nela e por isso
intervirá positivamente na sua história. Essa pequena partícula faz toda a
diferença, pois ela se coloca à mercê da vontade e propósito de Deus, sem
deixar de expressar abertamente seu desejo da maternidade. E como expressão de
sua gratidão ela oferece essa criança ao Senhor. Outra repetição tripla que
reforça o aspecto humilde de sua oração é a expressão “tua serva” que exprime a profunda submissão e resignação com as
quais ela faz sua petição ao Senhor.
É
provável que ela tinha conhecimento da história dos pais de Sansão (Jz 13.2-5)
de quando um anjo apareceu-lhes e declarou que a esposa estéril (como ela)
seria mãe, mas que o menino deveria ser nazireu desde seu nascimento. Assim, ao
declarar a Deus que em sendo atendida em sua oração e gerando um filho homem o
consagraria integralmente ao Senhor através do voto de nazireu, Ana está
deixando claro que deseja um filho não apenas para sua autossatisfação e nem
para cessar as humilhações provocadas por Penina, mas antes de qualquer outra
coisa, ela deseja um filho para glorificar a Deus! Ana vai além dos pais de
Sansão, pois ela oferece antecipadamente o filho que ainda não têm, mas que acalenta
ardentemente conceber por tantos anos desde o dia em que havia se casado, cheia
de planos e sonhos, que dolorosamente ainda não se haviam concretizados. Ana
quer um filho, mas ao mesmo tempo, está pronta para devolvê-lo integralmente ao
Senhor.
É
muito interessante percebermos uma significativa mudança de perspectiva da
narrativa: na primeira cena o problema da esterilidade é uma questão de conflito
familiar (1.3-8); nesta segunda cena (1.9-18) o problema é de ordem de
necessidade, submissão e confiança nos recursos e vontade de Deus. A oração na
bíblia jamais foi um instrumento de barganha ou coação, mas de submissão, pois
o propósito maior dela é nos capacitar para fazermos a vontade de Deus e jamais
pressiona-Lo a fazer a nossa (Mt 6.9-10) e quando oramos corretamente Deus
mesmo faz sossegar nossa alma e nos esvazia de toda ansiedade doentia (Fp
4.6-7).
É
verdade que naqueles dias os primogênitos descendentes da tribo de Levi ao completarem
vinte e cinco anos de idade deveriam se apresentar para o serviço sacerdotal e
ficavam disponíveis até os cinquenta anos. Mas a consagração de nazireu[1] (hebraico
nazir, derivada de nazar, «separar», «consagrar», «abster-se»). O voto de nazireu podia ser efetuado pelos
pais ou pela própria pessoa; podia ser por um período especifico ou por um
período indefinido e no caso de Sansão e Samuel (posteriormente de João
Batista) a iniciativa foram dos pais e por tempo indeterminado – os três o
mantiveram até a morte. Fosse por tempo definido ou indefinido a consagração deveria
ser plena, incluindo uma vida cotidiana diferenciada dos demais como não tomar
bebida fermentada, não tocar em mortos, não cortar os cabelos (cf. história de
Sansão), características que não continham em si qualquer implicação
sobrenatural ou mística, mas servia apenas para distingui-los dos demais jovens
ou pessoas.
Enquanto
Ana esta completamente absorvida em sua oração o sacerdote Eli (que será
sucedido posteriormente pelo próprio Samuel) a esta observando e interpreta
equivocadamente que ela estivesse sob o efeito do vinho e chama-lhe atenção.
Mas Ana respeitosamente conta sua história e a razão pela qual esta se
derramando diante do Senhor “Por favor,
senhor! respondeu ela, não estou embriagada! Estou muito triste, isso sim, e
estava abrindo meu coração diante do Senhor. Por favor, não pense que sou
apenas uma mulher embriagada [sem valor]! Oro assim por sofrer grande
preocupação e aflição", assim como o voto que fez de consagrar seu
filho integralmente como nazireu desde o nascimento. O ancião se compadece da
jovem mulher estéril, pois sabia muito bem a pressão familiar e social que ela
estava vivenciando ao longo daqueles anos todos e agora Eli certamente orientado
pelo Espírito Santo pronuncia uma bênção sobre a vida dela – vá em paz – a palavra “paz” (shalom) trás a ideia de “prosperidade/sucesso naquilo que
desejas” e complementa – “e que o
Deus de Israel lhe conceda o que você pediu” - de maneira que o ancião expressa a concordância de que a oração de Ana
seja atendida.
Ana a considerou as palavras do velho sacerdote Eli
à luz de uma profecia que apontava para a realização de seu sincero desejo, de
maneira que sua profunda tristeza se dissipa completamente e é substituída por
uma esperança renovadora (1.18). Nem o experiente sacerdote e nem a piedosa Ana
poderiam imaginar o que Deus haveria de fazer na vida e através da vida daquela
criança a ser gerada, portanto, tudo que estará por acontecer é suficiente para
tornar o nascimento desta criança um assunto adequado para a profecia.
“E seu
semblante já não era triste” – o tempo na presença de Deus transforma a
vida e a narrativa destaca o notável contraste entre a Ana que, angustiada e
sem apetite que buscou refugio e consolo na presença de Deus e a Ana que retorna
ao convívio familiar. Ainda que naquele momento não houvesse nenhum sinal
externo de que sua situação havia mudado em seu coração ela sabia que sua
oração fora atendida. Ana se constitui em uma ilustração prática da natureza da
genuína fé: “QUE É A FÉ? É
a convicção segura de que alguma coisa que nós queremos vai acontecer. É a
certeza de que o que nós esperamos está nos aguardando, ainda que o não
possamos ver adiante de nós.” (Hb 11.1). Mas em meio às gerações de incrédulos
que como Tomé necessita ver para crer, Ana é uma mulher bem aventurada, pois
não vendo creu! Seu coração se alegrou porque creu! E como seu antepassado e
modelo de fé Abraão, ela creu contra toda a esperança (Rm 4.18). Quando de fato
e de verdade começarmos a crer, veremos acontecer transformações nas nossas
vidas, bem como na vida desta Nação brasileira.
Uma leitura superficial pode nos induzir a pensar
que o personagem central destas narrativas seja a pessoa de Ana, todavia,
quando examinamos mais cuidadosamente constataremos que Deus é o personagem central destes acontecimentos e de seus futuros
desdobramentos. Ana fez sua petição justamente por ser temente a Deus. O velho sacerdote Eli só pode dar
a ela consolo e esperança por que falou em nome de Deus. A criança foi gerada e nasceu porque Deus atendeu a oração de Ana. Tudo depende de orar a Deus e ter resposta de Dele.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan
Pereira
Mestre em
Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia
Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
Artigos Relacionados
Primeiro Testamento:
Literatura Histórica 1º Samuel – Elcana e Ana (1.1-8)
Primeiro Samuel. Introdução
Geral
Primeiro Testamento:
Literatura Histórica - 1º Samuel – Contexto Histórico
Josué: Introdução Geral
Juízes: Introdução Geral
Rute: Sumário e Reflexão
(Capítulo 1)
Referências Bibliográficas
BALANCIN, Euclides
Martins. História do Povo de Deus. São Paulo. Paulus, 1989.
BALDWIN, Joyce G. 1
e 2 Samuel – introdução e comentário. Tradução Márcio Loureiro
Redondo. São Paulo: Vida Nova, 1996. [Série Cultura Bíblica 8].
BAXTER, J. Sidlow. Examinai
as Escrituras – Juízes a Ester, ed. Vida Nova, São Paulo, 1993.
BENSON, Joseph. Commentary
of the Old and New Testaments. New-York: Published By T. Carlton &
J. Porter, 200 Mulberry-Street, 1857.
BRIGTH, Jonh. História
de Israel. 7ª. ed. São Paulo. Paulus, 2003.
CASTEL, Francois. Historia
de Israel y de Judá. Desde los orígenes hasta el siglo II
d.C. Estella. Editorial Verbo Divio, 1998.
CHAMPLIN, Russell
Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São
Paulo. Hagnos, 2006, 8ª ed.
DOUGLAS, J. D. O
Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo. Vida Nova, 1995.
DRANE, John (Org.) Enciclopédia
da Bíblia. Tradução Barbara Theoto Lambert. São Paulo. Edições
Paulinas e Edições Loyola, 2009.
FOHRER, Georg. História
da religião de Israel. Tradução de Josué Xavier; Revisão de João Bosco
de Lavor Medeiros. São Paulo. Edições Paulinas, 1982.
FRANCISCO, Clyde
T. Introdução ao Primeiro Testamento. Rio de Janeiro.
JUERP, 1969.
GARDNER, Paul
(Editor). Quem é quem na bíblia sagrada – a história de todos os
personagens da bíblia. Tradução de Josué Ribeiro. São Paulo. Vida,
1999.
Halley, H. Manual
Bíblico. São Paulo. Sociedade Religiosa Edições Nova Vida, 1983.
HOFF, Paul. Os livros
históricos. São Paulo. Vida, 1996.
KIRKPATRICK, A. F. The
Cambridge Bible for Schools and Colleges was the first commentary. Cambridge
University Press, 1896.
KEIL, Carl Friedrich e
DELITZSH, Franz. Biblical Commentary on the Old Testament,
[1857-78].
PFEIFFER, Charles F.
(Editor). Diccionario bíblico arqueológico. Traductor Roberto
Gama. El Paso, Texas: Editorial Mundo Hispano [Casa Bautista de Publicaciones],
1993.
PRATT Jr. Richard L. Comentário
do Antigo Testamento: I e II Crônicas. Tradução Neuza Batista da
Silvai. São Paulo: Cultura Cristã, 2008.
SELMAN, Martin J. 1
e 2 Crônicas. Tradução Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova,
2006.
TENNEY, Merrill C.
(Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo. Cultura Cristã,
2008.
[1] Maimônides, um sábio judeu sefardi
(falecido em 1204), referiu-se à dignidade dos nazireus como equivalente à de
um sumo sacerdote.
Nenhum comentário:
Postar um comentário