quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Primeiro Testamento: Literatura Histórica 1º Samuel – Elcana e Ana (1.1-8)


Esboço (1 Samuel 1.1-2.11)
História de Samuel
v  Nascimento e Consagração (1.1-2.11)
o   Elcana e Ana (1.1-8)
A figura de Samuel é certamente uma das mais relevantes na literatura do Primeiro, assim com Moisés, Josué que o antecederam e Davi, Elias e Eliseu que o precederam. Ainda que nos livros bíblicos que levam o seu nome ele seja o protagonista em parte do primeiro e provavelmente não tenha escrito nenhum dos dois volumes, sua participação no desenvolvimento da história israelita é fundamental.
Ele será um dos poucos a exercer uma tripla função: foi o último dos juízes, sacerdote e exerceu também a função de profeta. Mesmo contrariado foi o instrumento de Deus para fazer a transição de um modelo de governo teocêntrico para um governo monárquico. Não se trata de uma simples mudança de modelo de governo, mas retrata a desvalorização que os israelitas deram em relação a aliança estabelecida com Yahvé. Quando Deus quebra a resistência de Samuel para que faça a transição, promovendo a unção (ordenação, posse) do primeiro rei (Saul), o Senhor deixa claro: eles não estão rejeitando você Samuel, mas rejeitam a Mim. Esta rejeição do governo divino será a marca nefasta dos governos subsequentes, com raríssimas exceções e o preço será sempre muito alto a ser pago por todo o povo (qualquer semelhança com a situação da história brasileira não será mera coincidência).
Conforme o esboço acima, o primeiro livro inicia com os relatos que envolveram a concepção, nascimento e consagração do menino Samuel, deixando claro que esse menino esta destinado a grandes coisas.
Houve certo homem
Estas palavras introdutórias não significam que esta história é a continuação cronológica do Livro dos Juízes ou de qualquer outro escrito anterior. É uma fórmula introdutória histórica comum ao inicio de uma nova narrativa: Josué, Juízes, Rute, 1 Reis, Ester, Esdras, Ezequiel, etc.
Elcana e Ana (1.1-8)
            Elcana é um descendente piedoso da tribo de Levi, que vive na região montanhosa de Efraim. Por causa de seu local de residência, ele é conhecido como um efraimitas, embora ele seja realmente da tribo de Levi (cf. 1Cr 6.33-38). Os sacerdotes e levitas estavam mais preocupados do que quaisquer outros israelitas, em preservar sua descendência clara e em ser capaz de prová-la; porque todas as honras e privilégios de seu cargo dependiam de sua descendência. O comentário de Richard Pratt Jr sobre o texto de Crônicas é esclarecedor: “A menção do bem conhecido Elcana (6.25) e Samuel (6.27,28) focaliza a linhagem coatita sobre o homem que ungiu Davi como rei de Israel (ver ISm 1.20; 16.7,12,13). Em 1 Samuel 1.1, Elcana é identificado como o efraimita, mas o cronista esclareceu aqui que Elcana e seu filho Samuel eram levitas vivendo entre os efraimitas” (2008, p. 116).
A região de Ramataim-Zofim[1] deve ser entendida como Ramá na terra de Zufe na região montanhosa de Efrata como se referindo que a cidade havia sido edificada sobre dois montes (Ramataim) e seus moradores eram uma espécie de vigias/atalaias (Zofim), perfazendo um dual de Ramá nome pelo qual ficou conhecida posteriormente (1.19; 2.11). Interessante o fato de que na cidade dos vigias/atalaias (Ramá) veio a ser estabelecida uma escola de profetas.[2] Sua localização especifica é muito discutida e não há um consenso sendo oferecidas diversas localizações. O mais provável é que estava localizada entre os montes de Efraim, que se estendia ao território de Benjamim, em cuja tribo ficava a cidade de Ramá.[3] Havia cinco cidades com esse nome, todas em terreno alto, de maneira que a expressão do “Monte Efraim” é acrescentada para distingui-la de outras “Ramás” em várias tribos, como em Benjamim, Naftali, etc.
            O nome Elcana significa literalmente «Deus se apossou ou Deus criou», era levita (1Cr 6.33-38) da família de Coate[4] descendentes da tribo de Efraim, portanto, um efratita, ou habitante de Belém (1Sm 17.12; Rt 1.2) e do território da tribo de Efraim (1Rs 11.26). Há razão para acreditar que Elcana o pai de Samuel, representa a quinta geração de israelitas em Canaã e, portanto, Samuel nasceu cerca de 130 anos após a entrada em Canaã – quatro gerações completas, ou 132 anos - e cerca de 40 anos antes de Davi. Também pode ser vista certa ironia divina no fato de que Samuel era descendente de Coré (1Cr 6.33-38), que fez um levante e foi punido com morte porque se opôs a decisão do Senhor  de escolher como sacerdotes os descendentes de Arão (cf. Nm 16). Mais uma vez Deus deixa claro que os filhos não herdam os pecados de seus pais, mas cada um morre em decorrência de seu próprio pecado (Dt 24.16).
            Elcana tinha duas esposas uma chamava-se Ana (graça, graciosa, bonita, encantos) e a outra Penina (pérola, joia, pedra preciosa – um nome muito popular nas mulheres do Oriente). “Ana parece ter sido sua primeira esposa; e como ela se mostrou estéril, ele foi induzido, é provável, através de seu sincero desejo de filhos, tomar outro, como Abraão, pelo consentimento de Sara” (Comentário de Benson). Uma situação muito semelhante à de Abraão e Sara.
Antes de qualquer crítica é preciso lembrar que naqueles tempos alguns costumes eram tolerados e até protegido pela Lei (Dt 14.26),[5] o que limitava a pratica apenas àqueles que podiam cumprir com todas as responsabilidades familiares. Mas tudo que foge ao padrão estabelecido por Deus em Gênesis – um homem e uma mulher – acaba gerando muito mais problemas do que benefícios (é só olhar a realidade social atual). A prática da poligamia com frequência produzia muitas complicações, ciúmes e fracassos tanto nos haréns reais quanto nas famílias, como Elcana descobriu. Esta pratica “gradualmente se tornou menos frequente, e nenhum caso está registrado na história bíblica após o Cativeiro [Babilônico], mas foi reservado para o cristianismo restabelecer o ideal primevo” (Cambridge Bible for Schools and Colleges). Nas literaturas paulinas do Segundo Testamento quando orienta as lideranças das comunidades cristãs resgata-se o princípio da monogamia estabelecida em Gênesis e rejeita-se qualquer tipo de poligamia (1Tm 3.2, 12).
            Elcana morava não muito distante do tabernáculo de Silo e como era levita certamente participava das três principais festas anuais do calendário religioso israelita (cf. Ex 23.14-17; Lv 23.2), sendo a primeira e mais importante a páscoa (primavera do hemisfério norte). Era o momento de se resgatar a identidade nacional, pois relembrava o resgate efetuado por Deus através de Moisés. Posteriormente essa festa da páscoa foi moldando a mensagem messiânica e o cordeiro que era sacrificado durante a principal refeição da festa se revestiu da tipologia do Cordeiro messiânico que haveria de surgir e que se cumpre plenamente no sacrifício de Jesus Cristo na cruz do calvário e assim como Moisés havia libertado os israelitas da escravidão do Egito, Jesus Cristo haveria de libertar os pecadores da escravidão do pecado (1Co 5.7).
Silo (descanso) tornou-se o ponto de referência religioso de Israel ainda nos dias de Josué (14.6; 18.1) que armou a tenda do Tabernáculo ali. Desta forma Silo se constituiu em sede permanente da Arca e do Tabernáculo e assim se constituindo no primeiro centro religioso de Israel durante todo o período dos juízes (18.31). Em raras ocasiões, o Tabernáculo e toda ou parte da mobília sagrada parece ter sido temporariamente transferida para lugares como Mispá e Betel, mas seu lar habitual sempre foi Silo.
            Embora não fossem necessários seus serviços de levita Elcana subiu ao local de culto com sua família como um exemplo para as demais famílias da sua vizinhança. Como vimos uma maioria dos israelitas havia se “esquecido” de seus compromissos religiosos e se ajustados à religiosidade ao se derredor (contexto do livro de Juízes). Mas Elcana permaneceu fiel aos seus princípios religiosos e observações da Lei mosaica e fazia questão de ir às festas para oferecer suas ofertas e adoração. Em Silo as coisas não estavam bem, pois Hofni e Finéias, filhos do velho sacerdote Eli, eram corruptos e depravados e este comportamento deles era notório a todos os moradores da região. A espiritualidade de Elcana e sua família se destacavam neste ambiente religioso decadente, assim como a fé de Rute, a narrativa que antecede, e posteriormente a fé e esperança messiânica de Ana e Simeão que se sobressai na religiosidade secularizada e politizada dos dias de Jesus Cristo.
            Além de sua própria oferta Elcana distribuía para todos os membros de sua família uma porção para que eles pudessem também sacrificassem ao Deus dos Exército[6](Yahweh sebã’ôt) é usada aqui pela primeira vez nos textos veterotestamentário em ligação com o santuário de Silo, ocorrendo depois frequentemente nos livros de Samuel (cf. 1 Sm 1.11; 4.4; 15.2; 17.45; 2 Sm 5.10; 6.2, 18; 7.8, 26, 27). Mas como que para consolar Ana, pelo fato de ser estéril, lhe dava uma porção dobrada,[7] como se ela tivesse um filho, demonstrando assim todo seu carinho para com ela. Como Von Gerlach coloca, “Tu és tão querida para mim como se tu tivesses me dado um filho”.
            Provavelmente por causa desta demonstração pública de Elcana para com Ana, a outra esposa Penina enciumada não perdia oportunidade para zombar (extremamente barulhenta e clamorosa com suas repreensões e zombarias) e humilhar Ana pelo fato dela ser estéril. As versões antigas, a Septuaginta, a siríaca e a Vulgata, que são todas três mais antigas que as vogais massoréticas, traduzem: “E assim ela (Penina) fez ano após ano”. Com que facilidade fazemos das bênçãos de Deus (Penina tinha filhos) uma arma para ferir e humilhar aqueles que não receberam as mesmas bênçãos. A exultação pelo infortúnio de outrem é uma das formas mais detestáveis ​​de malícia e o orgulho espiritual é tão infernal quanto qualquer outro tipo de orgulho carnal.
Por isso Ana chorou e não comeu - sentindo-se oprimida pela tristeza ela não estava disposta a comer nessa ocasião festiva, nem se considerava preparada para partilhar da comida consagrada, tomada que estava pela tristeza e pela humilhação continua de Penina. Muitas são as ocasiões em que nos deixamos tomar pela tristeza e frustrações da vida ou pelas críticas e humilhações impostas (Sl 42.3), de maneira que deixamos de nos alegrarmos na presença de Deus, o que não nos trás nenhum beneficio e ainda aumenta a nossa dor.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
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BALDWIN, Joyce G. 1 e 2 Samuel – introdução e comentário. Tradução Márcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 1996. [Série Cultura Bíblica 8].
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[1] Ramathaim-zophim pode significar "as duas colinas (cf.1Sm 9. 11-13) dos vigias", assim chamado por ser um posto de onde os vigias observavam.
[2] O Targum faz uma interpretação interessante no qual as palavras são parafraseadas assim, "e havia um ‘homem de Ramá’, dos discípulos dos profetas;”.
[3] Cidade situada a 8 quilômetros ao norte de Jerusalém; local onde Raquel, mãe de José, e, portanto das tribos de Efraim e de Manassés foi sepultada (Gn 35.19 e 48.7; Mt 2.18).
[4] A família dos coatitas, tinha o mais alto nível sacerdotal, sendo a família que fornecia os sumos sacerdotes (cf. 1 Crônicas 6: 2). 15 ).
[5] As leis de Moisés - como no caso de outra prática universalmente aceita, a escravidão - simplesmente procuram restringi-la e limitá-la por meio de regulamentos sábios e humanos.
[6] O Senhor dos Exércitos - Este título de Yahweh que, com algumas variações, é encontrado mais de 260 vezes no Primeiro Testamento, ocorre aqui pela primeira vez. Inclui todas as miríades de santos anjos que povoam as esferas celestes (1Rs 22.19). “Esta expressão, que não foi usada como um nome divino até a idade de Samuel tinha suas raízes em Gênesis 2:1, embora o título em si fosse desconhecido no período Mosaico e durante os tempos dos juízes. Representava Jeová como governante das hostes celestes (isto é, os anjos, de acordo com Gênesis 32.2, e as estrelas, de acordo com Isaías 40.26), que são chamados de "exércitos" de Jeová no Salmo 103.21; Salmos 148.2; ... É simplesmente aplicado a Jeová como o Deus do universo, que governa todos os poderes do céu, visíveis e invisíveis, como Ele governa no céu e na terra” (KEIL e DELITZSH, 1857). Ezequiel é o único profeta que não o usa, assim também como não aparece no livro de Jó. No Segundo Testamento, a frase só ocorre uma vez que (Tg 5.4).
[7] Uma escolha maior, de acordo com o costume oriental de demostrar respeito a convidados queridos ou distintos. (Veja em [232] 1Sa 9:24; veja também em [233] Gên 43:34).

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