Então José, seu marido, como era justo, e a não queria
infamar, intentou
deixá-la secretamente.
Ἰωσὴφ δὲ ὁ ἀνὴρ αὐτῆς, δίκαιος ὢν καὶ μὴ θέλων αὐτὴν
δειγματίσαι,
ἐβουλήθη λάθρᾳ ἀπολῦσαι αὐτήν.
O que é uma pessoa reta e/ou justa? Nestes
tempos de um relativismo generalizado falar sobre tal assunto parece algo
atemporal. José foi um homem que se revelou reto/justo em uma situação
extremamente delicada de sua vida. Acabara de receber a notícia de que sua
noiva[1] (Maria), a qual ainda não
havia consumado o casamento, se encontrava grávida. Tal notícia abalaria
qualquer homem. O que fazer? Os minutos da noite se tornam horas. De maneira
alguma conseguia pegar no sono. Amava verdadeiramente Maria, sua noiva, e de
forma alguma a colocaria em uma posição em que viesse a ser difamada. Mas por
outro lado, como fica a sua própria posição? Como enfrentaria os olhares
reprovadores de seus familiares e amigos (a está altura já convidados para a
festa de casamento).
É preciso destacar aqui que entre o verso 1 e o
verso 2 não há margem para se pensar que Maria ou seus familiares tenham de
alguma forma tentado ocultar o fato incontestável. O narrador apenas afirma que
José toma consciência ou toma conhecimento do que está acontecendo. Ou seja,
Maria toma ciência de que esta grávida e o comunica a José, direta ou por intermédio
de seus familiares.
Nos dias atuais o número absurdo de
pré-adolescentes e jovens grávidas (fora do relacionamento de casamento) tornou
o assunto banal - inclusive em alguns meios evangélicos – basta trocar a cor do
vestido e pronto. Mas nos dias de José ainda era um tema delicado e explosivo.
O texto deixa claro que a decisão de José nada tem leniente ou complacente com
o pecado, mas de manter sua integridade sem destruir a vida da outra pessoa.
Vamos ver se aprendemos algo com José sobre como ser uma pessoa integra, justa
e reta, e ainda manifestar um amor genuíno pleno de graça.
Primeiramente é necessário entendermos o que
significa justiça ou ser justo no sentido bíblico. A primeira reação de José
diante da notícia abaladora é iniciar um processo de divórcio privado que era
uma alternativa jurídica aceita, onde a parte ofendida entregava às autoridades uma carta
em particular na presença de apenas duas testemunhas, e que não exigia os
esclarecimentos quanto ao motivo, visto que o noivado implicava em
documentos jurídicos firmados pelo noivo e a família da noiva. Pois, legalmente
José e Maria estão “casados” e isto implicava em uma série de compromissos
legais que agora terão que serem anulados.
No texto indicado (1.19) Mateus nos oferece
dois fatores relevantes que nos ajudam a compreender a elaboração jurídica para
preservar ao máximo a integridade de Maria. Podemos identificá-los em dois
particípios que aparecem entre quando José é identificado como sendo marido de
Maria e o verso final, que traz o verbo principal e nos comunica sua resolução.
O primeiro termo pode ser traduzido como “sendo
justo”[2] [δίκαιος ὢν] e “não
querendo difamá-la” [αὐτὴν δειγματίσαι], muitos tradutores consideram ambos
os particípios como causais, ou seja, José age porque é justo e por esta razão toma
a decisão de que não deve denunciar Maria como sendo uma mulher imoral. Assim, José
agiu como agiu porque era justo e não queria expor publicamente Maria
denunciando-a como uma mulher adultera/imoral.
Outros leem, entre os quais me incluo, que se
trata de duas cláusulas, contrastantes: que José era um homem justo, mas ainda
assim estava preocupado com a reputação de sua esposa. Veremos que esta leitura
está em perfeita harmonia com as atitudes de Jesus.
Lembrando que de acordo com a lei romana e a
tradição judaica vigentes, exigia-se uma denúncia pública da infidelidade para
que a parte inocente fosse preservada. Portanto, se José estivesse preocupado
apenas em manter sua dignidade intocada, a teria denunciado de imediato ao
tribunal. Mas, como a ofensa era contra si mesmo, ele tinha o direito de
ignorar se quisesse.
Mas somente podemos compreender ou conciliar a
decisão de José e a natureza da sua retidão, se compreendermos corretamente o
conceito de retidão do Antigo Testamento. Vimos que a decisão de José vai na
contramão dos tribunais romanos e judaicos, porque não deseja expor ainda mais
Maria. De modo que, fazendo um trocadilho, não querendo sermos injusto para com
a decisão de José (omisso, conivente), precisamos entender o conceito de
justo/reto no seu aspecto mais amplo nas Escrituras.
Na medida em que vamos lendo toda a narrativa
de Mateus vai se tornando mais claro que Jesus está a trabalhar o conceito de
justo/reto e que vai conduzindo seus discípulos a uma compreensão correta dos
termos referidos à luz do contexto mais amplo das Escrituras. Nesta narrativa
mateana descobrimos que Jesus amalgama a misericórdia e a compaixão ao conceito
de retidão, não apenas como adereços, mas como marcas cruciais, que caracterizam
as ações do Deus justo nas páginas veterotestamentária.
Desta maneira fica mais claro a razão pela qual
Jesus exorta seus discípulos de que a justiça/retidão deles deve exceder em
muito a dos escribas e fariseus (5.20), não em quantidade, mas em qualidade - e
que José manifesta aqui em grau, gênero e número.
Para Jesus essa retidão/justiça deve ser
manifestada na forma como se trata o menor ou mais simples dentre os irmãos (25.34-40).
O que o Senhor está enfatizando é o tema de Oséias 6.6 onde o profeta declara
que Deus dá sempre preferência à misericórdia ao sacrifício ritualístico
mecanizado (Mt. 9.13; 12.7), e demonstra isso no transcorrer do seu ministério interagindo
com cobradores de impostos e pecadores. A lição de Jesus alcança seu apogeu na
cruz. O seu sacrifício é a mais extraordinária demonstração de justiça misericordiosa
a nós pecadores, em vez de nos abandonar à própria destruição, recebe sobre si
todas as nossas transgressões da Lei – o Justo, pelos injustos (1Pe
3.18).
Desta forma, quando chegamos à conclusão da
narrativa de Mateus, entendemos que a decisão e atitude de José, ainda que
contrariasse o pensamento vigente das autoridades romanas e judaicas estava em
perfeita sintonia com o ensino e a vivência de Jesus Cristo. Quando José não
olha para si mesmo (ego ferido), mas se coloca no lugar de Maria, que
certamente seria moída por toda sorte de críticos de plantão, ele se assemelha
ao padrão de justiça de Jesus!
Lembrando que José não poderia jamais ser
acusado de injusto se mantivesse seus direitos maritais, que aparentemente (ele
não sabe, mas nós sabemos) haviam sido violados, todavia, seria uma justiça sem
misericórdia e uma justiça que seguiria o senso comum (fariseus e demais religiosos).
Jesus espera sempre de seus discípulos o mesmo comportamento de José em relação
aos outros.
E um detalhe que abrilhanta ainda mais a
atitude de José. Quando ele toma a decisão de não reivindicar seus direitos e humilhar
Maria, ele não tinha conhecimento algum do que o Espírito Santo estava
realizando através dela – gerando através dela o Salvador. De maneira que, sua justiça
bondosa fica ainda mais evidente. Jesus passara três anos conduzindo seus discípulos
a este senso de justiça/bondosa prenha de graça. Cada relacionamento e ensino
dele vivencia esta verdade eterna manifestada no relacionamento de Deus com seu
povo e dele com seus discípulos.
Vale a pena replicar aqui as palavras sábias de
Richard Tamburro, mostrando que a
compaixão de José revela que ele é um homem com um coração como o de Deus, e
que certamente esta foi uma das características do seu caráter pelo qual Deus o
escolheu para ser um pai terreno para Jesus. De fato, a capacidade de José de
temperar a justiça com compaixão é verdadeiramente uma característica de Deus.
Portanto, Jesus cresceu respirando esta atmosfera de uma retidão piedosa.
Nos dias de hoje, quando o grito generalizado é
pelos meus (nossos) direitos, aqui está um bom tema para pensarmos neste
período de natividade, onde relembramos o nascimento de Jesus e por conseguinte
seu Evangelho.
A partir do exemplo de José precisamos nos perguntar
e avaliar: que tipo de retidão/bondade estamos manifestando e/ou temos manifestado
para com as outras pessoas que se relacionam conosco?
Viajando
no Evangelho Segundo Mateus (1.1-17) - A Genealogia (origem)
do Rei
http://reflexaoipg.blogspot.com/2017/07/viajando-no-evangelho-segundo-mateus-11_28.html?spref=tw
Viajando
no Evangelho Segundo Mateus (1.18-25)
http://reflexaoipg.blogspot.com/2017/08/viajando-no-evangelho-segundo-mateus.html?spref=tw
Natividade:
Entre o Natividade e a Páscoa há uma Cruz
http://reflexaoipg.blogspot.com/2018/10/Natividade-entre-o-Natividade-e-pascoa-ha-uma.html
Quando
o Natal foi Comemorado em 25 de dezembro?
http://reflexaoipg.blogspot.com/2016/12/quando-o-natal-foi-comemorado-em-25-de.html?spref=tw
Maria
e Isabel: Um Encontro Harmonioso entre o Antigo e o Novo Testamento
https://reflexaoipg.blogspot.com/2018/10/maria-e-isabel-um-encontro-harmonioso.html
Evangelho
Segundo Lucas: O Evangelho da Infância
http://reflexaoipg.blogspot.com/2017/10/uma-vez-mais-o-natal-se-aproxima.html?spref=tw
Referências
Bibliográficas
BROADUS,
John A. El Evangelio Segun Mateo. Traducción por Sarah A. Hale. Casa
Bautista de Publicações. [Comentario Expositivo sobre el Nuevo Testamento, Tomo
1].
DURVALL,
J. Scott & VERBRUGGE, Verlyn D. (Editors). Devotions on the Greek New
Testament. Zondervan, Grand Rapids, Michigan: 2012. [Roy E. Ciampa -
Learning from Joseph’s Righ teous ness].
HENDRIKSEN,
William. Comentário do Novo Testamento – Mateus, v.1. RIENECKER,
Fritz. Evangelho de Mateus – comentário esperança. Tradução
Werner Fuchs. Curitiba-PR: Editora Evangélica Esperança, 1998. Tradução de
Valter Graciano Martins. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001.
[1]
"desposada" - ou solenemente/legalmente comprometida em casamento –
com José. Esta cerimónia ou acordo pré-nupcial entre os judeus não deve ser não
deve ser confundida com o noivado moderno. Os noivos prometiam a sua fidelidade um ao
outro na presença de testemunhas. Num sentido restrito, tratava-se
essencialmente de um casamento.
[2]
Dikaios (um home justo), não bom ou misericordioso ou sem pecado. Uma pessoa
correta e zelosa pelos tramites da lei. O mesmo adjetivo é usado de Zacarias e
Isabel (Lc 1.6) e Simeão (Lc 2.25). "Um homem íntegro", que tinha a
consciência judaica para a observância da lei. No AT Noé e Jó foram chamados de
justos no mesmo sentido (Gn 6.9 e Jó 1.1).
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