sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Vocabulário Bíblico Teológico: Perseverança (ὑπομονή)

 


A palavra em si (ὑπομονή) é encontrada apenas uma vez no Novo Testamento (Ef 6.18) e esta relacionada diretamente à determinação de orar sem se descuidar:  "Ore o tempo todo no Espírito, com toda oração e súplica. Para isso, fique atento com toda perseverança, fazendo súplica por todos os santos"(Ef 6.18).

Mas o termo é muito rico na teologia e possui uma longa história nos debates teológicos da Igreja Cristã. O conceito de que todo genuíno crente haverá de perseverar até o fim, ou seja, cruzará vitorioso alinha de chegada para adentrar à vida eterna permeia os relatos bíblicos: Jesus dá garantias de que cada uma de suas ovelhas permaneceram: "Meu Pai, que os deu, é maior do que tudo, e ninguém é capaz de arrancá-los da mão do Pai" (João 10.29), nada e ninguém pode impedir que um salvo se perca;  o apóstolo Paulo escrevendo sobre o chamado de Deus para a salvação declara: "os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis" (Rm 11.29), jamais será mudado; assim também o fez em sua epistola anterior aos filipenses: "Tenho certeza de que aquele que começou um bom trabalho em você vai trazê-lo à conclusão no dia de Jesus Cristo" (Fp 1.6; cf. 2 Ts 3.3; 2Tm 1.12; 4.18), o Espírito Santo inicia e conclui o processo da Salvação. É a partir deste contexto das Escrituras que a teologia reformada defende com veemência que uma pessoa "uma vez salva, permanecera salva"; de maneira que aqueles a quem Deus elegeu/escolheu, que foram redimidos no sacrifício de Cristo no calvário e que foram selados com o Espírito Santo, efetivamente perseverará até o fim.

Desta forma, a perseverança do crente está intimamente relacionada com a eleição e a predestinação. Mas em qualquer pensamento teológico onde o ser humano tem participação efetiva no processo da salvação o conceito de perseverança acaba sendo diluído e torna-se imperceptível.

Evidentemente que a perseverança, como todo o processo da redenção é uma ação graciosa de Deus, e não apenas um esforço humano, pois o Espírito Santo efetua a conversão e permanentemente mantém a fé salvadora até o final definitivo na glorificação. Desta forma o crente persevera até o fim porque ele é mantido pelo próprio Deus que o salva, de maneira que unicamente a Deus se deve toda honra e toda glória.

Os críticos deste pensamento teológico buscam em alguns textos um argumento contraditório. O escritor de Hebreus parece indicar que uma pessoa, mesmo depois de seu novo nascimento, pode apostatar e virar as costas para Deus e sua salvação: “Pois é impossível restaurar novamente o arrependimento daqueles que já foram iluminados, que provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a bondade da palavra de Deus e os poderes da época vindoura, se então cometerem apostasia, uma vez que crucificam o Filho de Deus por conta própria e o expõem ao desprezo” (Hb 6.4-6); ainda em outro momento o escritor bíblico declara: “Pois se pecarmos deliberadamente após recebermos o conhecimento da verdade, não resta mais um sacrifício pelos pecados, mas uma perspectiva temerosa de julgamento, e uma fúria de fogo que consumirá os adversários” (Hb 10.26, 27).

É preciso, portanto, examinar com muito cuidado as afirmações contidas em Hebreus, pois elas precisam estar em harmonia com o que Jesus afirmou e foi registrado por João, conforme acima citado. Uma regra áurea da boa hermenêutica é de que se dois textos bíblicos estão aparentemente se contradizendo ou estamos interpretando um dos textos equivocadamente ou estamos interpretando ambos os textos erroneamente.

Há dois aspectos aqui que precisam serem levantados: 1) a pessoa que caiu não experimentou de fato uma genuína conversão (novo nascimento), o que é possível e ocorre com frequência; 2) e que todo aquele que verdadeiramente “nasceu de novo”, deve produzir os resultados efetivos desta nova vida em Cristo. Spurgeon caminhava na calçada com um conhecido, quando se depararam com um homem embriagado caído à calçada. Imediatamente o acompanhante disse: eis aí um dos membros de sua igreja! Ao que Spurgeon tranquilamente respondeu: de fato ele é um membro de minha igreja, porque se fosse membro da igreja de Cristo, jamais estaria nestas terríveis condições.

Não é a perseverança que resulta em fé, mas a fé é que produz a perseverança. Deus exige dos cristãos não apenas que eles creiam no evangelho, mas também que eles perseveram em viver em conformidade com o evangelho, independentemente das dificuldades que encontram, pois, a perseverança é a prova da autenticidade da fé e leva à maturidade espiritual. Todo aquele que foi regenerado haverá de produzir frutos dignos desta nova vida.

Desta forma, todo genuíno crente, mesmo diante de suas próprias limitações, persevera diária e conscientemente em viver de forma agradável a Deus e de realizar a vontade de seu Salvador e Senhor. Ainda que como Davi, Pedro e tantos outros, venhamos a cair ou ainda que a nossa velha natureza se manifeste com mais frequência do que desejamos, e venhamos a clamar como Paulo “miserável homem que sou”, isso não caracteriza apostasia. Nos cento e cinquenta salmos abundam as orações para que Deus em sua misericórdia perdoe os pecados praticados e firme os passos para que não venha a desviar-se da Torah, as preciosas instruções de Deus. E não em poucas ocasiões o salmista está vendo a morte diante de seus olhos.

A perseverança é uma das virtudes mais lindas e extraordinárias da vida cristã, pois ela é a força motriz do espírito humano que nos impulsiona à prática diária das demais virtudes espirituais e morais. É o adorno de toda a vida virtuosa. Quando Paulo exorta – nunca deixe de fazer o bem – o que é bom, benéfico que abençoa a vida de outras pessoas, isso exige por parte deste cristão – perseverança. É a perseverança que distingui o cristão maduro do cristão imaturo e essa maturidade somente é possível na vida daqueles que perseveram, mesmo diante das contrariedades e adversidades da vida. Nas orientações finais de sua segunda carta aos crentes em Corinto o apostolo declara: "Seja firme e inabalável [perseverante], sempre abundando na obra do Senhor, sabendo que seu trabalho não é em vão no Senhor" (1Co 15.58).

A razão pela qual Paulo e Barnabé não fizeram a segunda viagem missionária juntos foi o jovem João Marcos. Antes mesmo da metade da primeira viagem, João Marcos retorna, ou seja, não permaneceu firme, não perseverou, ainda que não saibamos os motivos; agora Paulo se recusa a leva-lo na nova viagem. Mas posteriormente, em algum momento Paulo e João Marcos se reconciliaram e o velho apostolo, preso em Roma e antevendo seu martírio, escrevendo seu último documento (canônico) traz esse testemunho: “Solicite a João Marcos que venha me ver, pois ele é extremamente útil no ministério”; e o próprio apóstolo, escrevendo aos Coríntios, sintetiza de forma maravilhosa o conceito de perseverança cristã: “Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados. Perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos;” (2Co 4.8,9). Certamente esse era o grito de guerra dos primeiros cristãos enquanto era levados acorrentados ao Coliseu romano para serem lançados às bestas feras e aos gladiadores sedentos para derramarem o sangue deles.

Tiago em sua epistola coloca Jó como exemplo de um crente perseverante em meio às mais duras e implacáveis adversidades da vida. Enquanto os profetas eram exemplos de paciência, a experiência de Jó exemplifica vividamente a perseverança. Ele permaneceu firme em situações muito difíceis, mas no final Deus manifesta sua grande compaixão e misericórdia para com seu servo (5.11; cf. Jó 42.10,12).

A perseverança no livro do Apocalipse é de grande relevância, por se referir ao período derradeiro da história humana. O Jesus glorioso escreve às suas igrejas, em todos os lugares e tempos, representativo nas Sete Igrejas localizadas na Ásia Menor. O substantivo hupomonē é usado sete vezes no livro de Apocalipse (outra vez o sete). Ele se refere à forma com que o cristão (igreja) deve responder quando sua fé (vida) é ameaçada. Em Apocalipse 1.9, refere-se à experiência de João e das igrejas para as quais escreve. Eles eram coparticipantes no sofrimento, no reino e na “paciente perseverança”. Em sua unidade com Cristo eles suportaram corajosamente os sofrimentos e aflições, enquanto esperavam pelo Reino de Deus. Jesus destaca a perseverança em duas delas - Éfeso e Tiatira (Ap 2.2-3,19). Primeiro Jesus declara que sabe, vê, tem conhecimento de que eles têm perseverado na fé e no ensino recebidos, mesmo diante das pressões das ideologias contrárias transvestidas de verdade, como também diante das pressões decorrentes das perseguições legais efetuadas pelo Império Romano. Quer fossem pressões internas ou externas aquelas igrejas estavam permanecendo firmes, perseverando em meio às adversidades e por isso estavam sendo aprovadas.

Resumidamente podemos dizer que a Palavra de Deus nos exorta a sermos perseverante na vida cristã da mesma maneira e/ou forma com que iniciamos - pela fé que nos foi outorgada pela graça de Deus - e não em decorrência do nosso esforço pessoal, pois as nossas melhores boas obras são apenas trapos de imundícia. A nossa perseverança é tão somente uma continuidade da graça de Deus que permanentemente opera em nós, nos capacitando a respondermos positivamente ao chamado e vocação de Deus. Como tão bem afirma o apostolo Paulo: aquilo que começou em nós pela ação do Espírito Santo, não pode ser prosseguida e/ou pelo esforço da carne.

Algumas questões para aprofundar mais o tema da perseverança: (1) Como um Deus absolutamente soberano age e interage com seres moralmente responsáveis? (2) Que garantia qualquer pessoa tem em um universo onde Deus não está completamente no controle? Que certeza alguém pode ter da sua salvação, se depende do seu esforço próprio para perseverar?

  

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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