A palavra em si (ὑπομονή) é encontrada apenas
uma vez no Novo Testamento (Ef 6.18) e esta relacionada diretamente à
determinação de orar sem se descuidar: "Ore o tempo todo no Espírito, com
toda oração e súplica. Para isso, fique atento com toda perseverança,
fazendo súplica por todos os santos"(Ef 6.18).
Mas o termo é muito rico na
teologia e possui uma longa história nos debates teológicos da Igreja Cristã. O
conceito de que todo genuíno crente haverá de perseverar até o fim, ou seja,
cruzará vitorioso alinha de chegada para adentrar à vida eterna permeia os
relatos bíblicos: Jesus dá garantias de que cada uma de suas ovelhas
permaneceram: "Meu Pai, que os deu, é maior do que tudo, e ninguém é
capaz de arrancá-los da mão do Pai" (João 10.29), nada e ninguém pode
impedir que um salvo se perca; o
apóstolo Paulo escrevendo sobre o chamado de Deus para a salvação declara: "os
dons e o chamado de Deus são irrevogáveis" (Rm 11.29), jamais será
mudado; assim também o fez em sua epistola anterior aos filipenses: "Tenho
certeza de que aquele que começou um bom trabalho em você vai trazê-lo à
conclusão no dia de Jesus Cristo" (Fp 1.6; cf. 2 Ts 3.3; 2Tm 1.12; 4.18),
o Espírito Santo inicia e conclui o processo da Salvação. É a partir deste
contexto das Escrituras que a teologia reformada defende com veemência que uma
pessoa "uma vez salva, permanecera salva"; de maneira que
aqueles a quem Deus elegeu/escolheu, que foram redimidos no sacrifício de
Cristo no calvário e que foram selados com o Espírito Santo, efetivamente perseverará
até o fim.
Desta forma, a perseverança
do crente está intimamente relacionada com a eleição e a predestinação. Mas em
qualquer pensamento teológico onde o ser humano tem participação efetiva no processo
da salvação o conceito de perseverança acaba sendo diluído e torna-se
imperceptível.
Evidentemente que a
perseverança, como todo o processo da redenção é uma ação graciosa de Deus, e
não apenas um esforço humano, pois o Espírito Santo efetua a conversão e
permanentemente mantém a fé salvadora até o final definitivo na glorificação.
Desta forma o crente persevera até o fim porque ele é mantido pelo próprio Deus
que o salva, de maneira que unicamente a Deus se deve toda honra e toda glória.
Os críticos deste pensamento
teológico buscam em alguns textos um argumento contraditório. O escritor de
Hebreus parece indicar que uma pessoa, mesmo depois de seu novo nascimento,
pode apostatar e virar as costas para Deus e sua salvação: “Pois é
impossível restaurar novamente o arrependimento daqueles que já foram
iluminados, que provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do
Espírito Santo, e provaram a bondade da palavra de Deus e os poderes da época vindoura,
se então cometerem apostasia, uma vez que crucificam o Filho de Deus por conta
própria e o expõem ao desprezo” (Hb 6.4-6); ainda em outro momento o
escritor bíblico declara: “Pois se pecarmos deliberadamente após recebermos
o conhecimento da verdade, não resta mais um sacrifício pelos pecados, mas uma
perspectiva temerosa de julgamento, e uma fúria de fogo que consumirá os
adversários” (Hb 10.26, 27).
É preciso, portanto,
examinar com muito cuidado as afirmações contidas em Hebreus, pois elas
precisam estar em harmonia com o que Jesus afirmou e foi registrado por João,
conforme acima citado. Uma regra áurea da boa hermenêutica é de que se dois
textos bíblicos estão aparentemente se contradizendo ou estamos interpretando
um dos textos equivocadamente ou estamos interpretando ambos os textos
erroneamente.
Há dois aspectos aqui que
precisam serem levantados: 1) a pessoa que caiu não experimentou de fato uma
genuína conversão (novo nascimento), o que é possível e ocorre com frequência; 2)
e que todo aquele que verdadeiramente “nasceu de novo”, deve produzir os
resultados efetivos desta nova vida em Cristo. Spurgeon caminhava na calçada
com um conhecido, quando se depararam com um homem embriagado caído à calçada.
Imediatamente o acompanhante disse: eis aí um dos membros de sua igreja! Ao que
Spurgeon tranquilamente respondeu: de fato ele é um membro de minha igreja,
porque se fosse membro da igreja de Cristo, jamais estaria nestas terríveis
condições.
Não é a perseverança que
resulta em fé, mas a fé é que produz a perseverança. Deus exige dos cristãos
não apenas que eles creiam no evangelho, mas também que eles perseveram em
viver em conformidade com o evangelho, independentemente das dificuldades que
encontram, pois, a perseverança é a prova da autenticidade da fé e leva à
maturidade espiritual. Todo aquele que foi regenerado haverá de produzir frutos
dignos desta nova vida.
Desta forma, todo genuíno
crente, mesmo diante de suas próprias limitações, persevera diária e
conscientemente em viver de forma agradável a Deus e de realizar a vontade de
seu Salvador e Senhor. Ainda que como Davi, Pedro e tantos outros, venhamos a
cair ou ainda que a nossa velha natureza se manifeste com mais frequência do
que desejamos, e venhamos a clamar como Paulo “miserável homem que sou”, isso
não caracteriza apostasia. Nos cento e cinquenta salmos abundam as orações para
que Deus em sua misericórdia perdoe os pecados praticados e firme os passos para
que não venha a desviar-se da Torah, as preciosas instruções de Deus. E não em
poucas ocasiões o salmista está vendo a morte diante de seus olhos.
A perseverança é uma das
virtudes mais lindas e extraordinárias da vida cristã, pois ela é a força
motriz do espírito humano que nos impulsiona à prática diária das demais
virtudes espirituais e morais. É o adorno de toda a vida virtuosa. Quando Paulo
exorta – nunca deixe de fazer o bem – o que é bom, benéfico que abençoa a vida
de outras pessoas, isso exige por parte deste cristão – perseverança. É a
perseverança que distingui o cristão maduro do cristão imaturo e essa
maturidade somente é possível na vida daqueles que perseveram, mesmo diante das
contrariedades e adversidades da vida. Nas orientações finais de sua segunda
carta aos crentes em Corinto o apostolo declara: "Seja firme e
inabalável [perseverante], sempre abundando na obra do Senhor, sabendo que seu
trabalho não é em vão no Senhor" (1Co 15.58).
A razão pela qual Paulo e
Barnabé não fizeram a segunda viagem missionária juntos foi o jovem João
Marcos. Antes mesmo da metade da primeira viagem, João Marcos retorna, ou seja,
não permaneceu firme, não perseverou, ainda que não saibamos os motivos; agora
Paulo se recusa a leva-lo na nova viagem. Mas posteriormente, em algum momento
Paulo e João Marcos se reconciliaram e o velho apostolo, preso em Roma e
antevendo seu martírio, escrevendo seu último documento (canônico) traz esse
testemunho: “Solicite a João Marcos que venha me ver, pois ele é
extremamente útil no ministério”; e o próprio apóstolo, escrevendo aos
Coríntios, sintetiza de forma maravilhosa o conceito de perseverança cristã: “Em
tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados.
Perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos;” (2Co
4.8,9). Certamente esse era o grito de guerra dos primeiros cristãos enquanto
era levados acorrentados ao Coliseu romano para serem lançados às bestas feras
e aos gladiadores sedentos para derramarem o sangue deles.
Tiago em sua epistola coloca
Jó como exemplo de um crente perseverante em meio às mais duras e implacáveis
adversidades da vida. Enquanto os profetas eram exemplos de paciência, a
experiência de Jó exemplifica vividamente a perseverança. Ele permaneceu firme
em situações muito difíceis, mas no final Deus manifesta sua grande compaixão e
misericórdia para com seu servo (5.11; cf. Jó 42.10,12).
A perseverança no livro do
Apocalipse é de grande relevância, por se referir ao período derradeiro da
história humana. O Jesus glorioso escreve às suas igrejas, em todos os lugares
e tempos, representativo nas Sete Igrejas localizadas na Ásia Menor. O substantivo
hupomonē é usado sete vezes no livro de Apocalipse (outra vez o sete). Ele se
refere à forma com que o cristão (igreja) deve responder quando sua fé (vida) é
ameaçada. Em Apocalipse 1.9, refere-se à experiência de João e das igrejas para
as quais escreve. Eles eram coparticipantes no sofrimento, no reino e na “paciente perseverança”. Em sua unidade
com Cristo eles suportaram corajosamente os sofrimentos e aflições, enquanto
esperavam pelo Reino de Deus. Jesus destaca a perseverança em duas delas - Éfeso
e Tiatira (Ap 2.2-3,19). Primeiro Jesus declara que sabe, vê, tem conhecimento
de que eles têm perseverado na fé e no ensino recebidos, mesmo diante das
pressões das ideologias contrárias transvestidas de verdade, como também diante
das pressões decorrentes das perseguições legais efetuadas pelo Império Romano.
Quer fossem pressões internas ou externas aquelas igrejas estavam permanecendo
firmes, perseverando em meio às adversidades e por isso estavam sendo aprovadas.
Resumidamente podemos dizer
que a Palavra de Deus nos exorta a sermos perseverante na vida cristã da mesma
maneira e/ou forma com que iniciamos - pela
fé que nos foi outorgada pela graça de Deus - e não em decorrência do nosso
esforço pessoal, pois as nossas melhores boas obras são apenas trapos de
imundícia. A nossa perseverança é tão somente uma continuidade da graça de Deus
que permanentemente opera em nós, nos capacitando a respondermos positivamente
ao chamado e vocação de Deus. Como tão bem afirma o apostolo Paulo: aquilo que
começou em nós pela ação do Espírito Santo, não pode ser prosseguida e/ou pelo
esforço da carne.
Algumas questões para
aprofundar mais o tema da perseverança: (1) Como um Deus absolutamente soberano age
e interage com seres moralmente responsáveis? (2) Que garantia qualquer
pessoa tem em um universo onde Deus não está completamente no controle? Que
certeza alguém pode ter da sua salvação, se depende do seu esforço próprio para
perseverar?
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