quarta-feira, 16 de junho de 2021

Comentários Bíblicos: O que são e qual sua função?

 


        Para aqueles leitores bíblicos que não frequentam o meio acadêmico o termo “comentário bíblico” pode soar de forma intrigante ou até mesmo desconhecido. Para o estudante mais acadêmico o comentário bíblico é uma ferramenta útil para o estudo da Bíblia.

            A Bíblia é a única fonte primária, de maneira que seja qual for o tipo de comentário bíblico será sempre fontes secundárias, cujo objetivo deve ser sempre o de esclarecer e facilitar a compreensão das Escrituras. Infelizmente um número expressivo de comentaristas mais ofuscam e desvirtuam o sentido primário dos textos bíblicos, do que ajudam os leitores a compreende-los adequada e corretamente. Por esta razão é necessário que se tenha um conhecimento sobre quais são os tipos e utilidade deles, bem como desenvolver um senso de discernimento para se distinguir  neste mar de comentários que foram e continuam sendo produzidos nestes mais de dois mil anos de cristianismo.

Tipos de comentários

Há uma grande variedade de comentários e algumas perguntas nos ajudam: quão inclusivos eles são; que nível de especialização acadêmica eles pressupõem; qual a metodologia interpretativa o comentarista utiliza; o que está incluído em seu plano ou esquema geral; e por fim, mas o mais importante é identificar com muita clareza quais são os pressupostos teológicos do autor.

        Um esboço para se compor uma boa biblioteca: (1) a Bíblia nas línguas originais, bem como uma ou mais traduções de boa qualidade; (2) uma ou mais  Bíblias de estudo; um comentário em volume único de toda a Bíblia; bem como comentário de um volume do Antigo e do Novo Testamento, visto que seus autores se aprofundaram ainda mais as temáticas de cada livro; os tratamentos mais detalhados das escrituras são as séries de comentários ou, possivelmente, comentários separados sobre livros individuais da Bíblia. Em cada nível, o estudante da Bíblia ganha acesso a informações cada vez mais detalhadas a respeito de passagens individuais e/ou perícopes especificas de cada livro bíblico.

Comentários de Volume Único: Pode ser um comentário que engloba todos os livros da bíblia em um único volume, ou que abordam separadamente todos os livros do Antigo Testamento e outro volume que abordam todos os livros do Novo Testamento. O aspecto positivo é que você terá em mãos um comentário geral de toda a bíblia. Todavia, por mais que se esforcem os comentaristas, não será possível, pela delimitação de espaço, uma abordagem mais ampla das discussões textuais e interpretativa. Mormente se utiliza a seção introdutória de cada livro para se apresentar as controvérsias e dificuldades que serão encontradas no transcorrer do estudo daquele livro especifico.   Para isso o comentarista segue um esboço contendo resumos de parágrafos ou seções maiores do conteúdo dos livros bíblicos individuais e vai tecendo seus comentários a partir deste esboço.

Comentário em Série: A série pode ser comentários sobre (1) cada livro de toda a Bíblia, ou (2) cada livro do Antigo Testamento ou do Novo Testamento. Dependendo da proposta editorial a série pode conter de apenas três ou quatro volumes a mais de cem volumes. Esse tipo de comentário em série com muitos volumes remonta ao início da escrita de comentários na era moderna. Um aspecto técnico positivo deste tipo de comentários é que cada volume produzido segue um formato pré-estabelecido pelo(s) editor(es) de maneira que se mantém um padrão de qualidade para cada volume. Nestas últimas décadas os comentários em série estão cada vez mais exigentes em relação à metodologia exegética de seus autores melhorando substancialmente o padrão de qualidade do conjunto da obra.

Comentário Individual: Outro tipo de comentário é o comentário individual de cada livro da bíblia, podendo ser de um único comentarista ou mais autores. Ao longo de sua carreira, vários estudiosos desenvolvem conhecimentos de alto nível em áreas específicas dos estudos bíblicos. Mormente este tipo de comentário é resultante de uma pesquisa mais profunda por parte do comentarista, possibilitando ao leitor uma visão excepcional do significado daquele livro bíblico.        
        Os comentários individuais oferecem uma ampla diversidade de perspectiva que refletem as opiniões e conclusões dos seus autores. O que exige por parte do leitor um cuidado mais apurado. Também a produção individual varia muito em seu padrão de qualidade, diferente dos produzidos em série, o que pode resultar em uma interpretação superficial ou até mesmo distorcida do sentido do texto bíblico analisado.

            Os comentários podem ser classificados também em relação ao seu aspecto técnico acadêmico:

 Comentário Devocional: Normalmente este tipo de comentário visa o leitor leigo e faz uma abordagem mais simples em relação ao texto bíblico, o que não implica necessariamente em análise superficial, mas em que não se dará muito espaço para as discussões mais acadêmicas como por exemplo as variantes textuais ou as opiniões divergentes de outros autores. Concentra-se mais especificamente no significado primário do texto abordado, com ênfase nas aplicações práticas da vivência cotidiana do público a ser alcançado. O propósito é mais inspirar do que informar o leitor contemporâneo. De maneira que, muitos comentários devocionais acabam ficando defasados, visto que, suas aplicações não trazem o mesmo impacto na vida do leitor, uma vez que o contexto vivencial é completamente diferente. Um cuidado a mais é quanto a metodologia interpretativa do comentarista. Muitas vezes, por se tratar de um comentário devocional e não exegético, o autor não trata com acuidade necessário os aspectos hermenêuticos exegéticos do texto. Essa negligência certamente comprometera o resultado final do trabalho apresentado. Prolifera nesses comentários devocionais toda sorte de “opiniões” e “pensamentos” pessoais dos seus respectivos autores, que em vez de extrair o conceito do texto (exegese) , acabam por imporem suas próprias opiniões ao texto analisado (eisegesis), o que fere de morte qualquer comentário bíblico. Mas como afirmei acima, há excelentes e bons comentários devocionais.

Comentário Expositivo: Nesse tipo de comentários há uma preocupação maior com os aspectos técnicos. Procura-se o significado histórico do texto e normalmente faz-se um estudo a partir dos textos originais hebraico e grego. Mas os comentaristas tem em mente o fato de que seus leitores não dominam estas questões linguísticas e exegéticas, de maneira que se faz um esforço em explicar tais questões e não apenas apresenta-las. Muitos comentários em série trazem esse perfil, bem como os comentários individuais. Eles se concentram no significado do texto sem entrar em tecnicismos tipicamente acadêmicos, evitando uma leitura cansativa, mas sem ser superficial nas abordagens textuais. Também não são homiléticos e nem devocionais.

Eles procuraram evitar os extremos de serem excessivamente técnicos ou inutilmente breves. Eles são escritos para auxiliar os leitores não acadêmicos a entenderem melhor o sentido do texto bíblico.            Também trazem um resumo das alternativas interpretativas das perícopes e/ou parágrafos dos textos bíblicos, possibilitando um melhor entendimento por parte dos leitores. Para os leitores que desejam se aprofundar mais no estudo bíblico esse tipo de comentário é o mais qualificado.

Comentário Exegético: Esse tipo de comentário é o mais acadêmico. Aqui o comentarista vai enfatizar todas as ferramentas de que dispõe para explorar o texto em todos os seus aspectos linguístico e gramaticais. A leitura desses comentários é mais pesada e cansativa, pois discute-se os mínimos detalhes do livro abordado e também são volumes extensos chegando a mais de oitocentas páginas. Para facilitar a vida do leitor os comentaristas utilizam uma metodologia, que varia de comentarista para comentarista, mas que via de regra contém: (1) Tradução, (2) Notas, (3) Interpretação e (4) Referências e Estudos Adicionais. O objetivo é fornecer uma análise sólida e crítica, sem qualquer perda de sensibilidade ao significado espiritual dos textos bíblicos.  Para o leitor mais exigente e que necessita de um aprofundamento das questões exegéticas e hermenêuticas para prepararem suas exposições ou preleções esse tipo de comentário é essencial.  

Comentário Homilético: Esse tipo de comentário visa um público mais especifico que são os pastores ou pregadores. Além das questões exegéticas os comentaristas oferecem opções para uma exposição ou predica mais adequada aos textos.

Pressupostos Teológicos: Todo comentarista bíblico elabora seu trabalho tendo como pano de fundo sua herança teológica. Um comentarista bíblico calvinista acabara em algum momento enfatizando suas convicções teológicas, o mesmo ocorrendo com um comentarista cuja os pressupostos teológicos seja arminianos; se o autor é católico ou reformado eles haverão de expor suas convicções eclesiásticas. No meio evangélico há comentaristas conservadores e liberais e entre os conservadores há aqueles que são fundamentalistas. De maneira que o leitor ou estudante deve estar atento às origens de cada autor e exercer seu senso crítico para que não venha endossar conclusões que possam trazer contrariedades para ele e para seus ouvintes ou alunos. Jamais menospreze as informações biográficas dos comentaristas e nem os Prefácios editoriais, pois neles se encontram os pressupostos daquelas obras. Isto não significa que se deva ignorar toda e quaisquer obra que não se ajusta ao seu pensamento teológico doutrinário ou que não se possa ler tais obras, mas que se tenha consciência e discernimento quanto ao que se está lendo.

 

Utilização livre desde que citando a fonte

Guedes, Ivan Pereira

Mestre em Ciências da Religião.

me.ivanguedes@gmail.com

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Referências Bibliográficas        

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BRUGGEN, Jacob Van. Para ler a Bíblia: uma introdução à leitura da Bíblia. Traduzido por Theodoro J. Havinga. São Paulo: Cultura Cristã, 1998.  

DOCKERY, S. David. Hermenêutica Contemporânea à luz da Igreja Primitiva. Traduzido por Álvaro Hattnher. São Paulo: Vida, 2005.

FEE, Gordon D. & Douglas Stuart. Entendes o que lês? Traduzido por Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 2002.

SIFOLELI, Israel. Manual de Hermenêutica bíblica. São Paulo, Fonte Editorial, 2016.

BEEKMAN, John e CALLOW, John. A Arte de Interpretar e Comunicar a Palavra Escrita - Técnicas de Tradução da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1992.

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