O profeta abrange em sua pregação toda gama de temas que oprimiam o povo e desfiguravam a Torá. Para Amós era inadmissível que aqueles que foram colocados na posição de orientar e conduzir a nação pudessem ser os deturpadores da justiça e do bem estar dos desvalidos.
Na primeira série de oráculos (1.3-2.16) o profeta inicia de forma genérica
dirigindo contra as nações próximas de Israel, para no final voltar seu arsenal
contra a nação nortista. O numero de oito oráculos não é acidental, mas
proposital, pois rompe a série de sete (perfeita, completo) e centrando toda a
atenção no último oráculo que acaba sendo imperioso. A relevância desta última
mensagem fica evidente na sua extensão muito maior do que qualquer uma das
anteriores. Entretanto, esta última acusação somente pode ser plenamente
compreendida em todas as suas implicações, quando lido à luz de suas
predecessoras.
Diferentemente do que faz nas sete primeiras acusações onde se refere a uma
única transgressão, que considera a mais grave, quando chega à acusação contra
Israel ele enumera sete pecados (2.6-16), cujo numero representa a totalidade
dos pecados.
Ainda que as sentenças sejam de difícil exegese, de
maneira que os estudiosos encontram dificuldades em unificar suas opções é
preciso salientar o propósito do profeta é antes de qualquer coisa expor o
problema da injustiça e as consequências trágicas que elas produzem na vida do
que estão à mercê delas. Abaixo enumero os setes pecados, ainda que a proposta
deste artigo seja destacar os dois primeiros que se relacionam mais
especificamente com a questão da escravidão, ainda que toda sorte de desvios
daquilo que é justo torna-se instrumento de opressão, violência e cerceamento
dos direitos:
a)
“porque vendem por prata o justo” (v. 6)
b)
“e [vendem] o necessitado [pobre] por um par de sandálias” (v. 6)
c)
“Pisam a cabeça dos necessitados [pobres]” (v. 7)
d)
“negam justiça ao oprimido” (v. 7)
e)
“um homem e seu pai possuem a mesma mulher” (v. 7)
f)
“estendem-se sobre roupas deixadas em fiança diante de qualquer altar” (v. 8)
g)
“bebem vinho de impostos [dinheiro roubado] no templo de seus deuses [no meu
próprio templo]” (v. 8)
“porque vendem por prata o
justo”
A questão maior esta no sentido do termo “justo – saddiq” que pode ser
interpretado no sentido jurídico “inocente”, de maneira que o profeta acusa os
juízes e/ou tribunais de estarem corrompidos. Em troca de benefícios pessoais
acabam deixando a lei de lado e favorecendo os ricos em detrimento dos pobres.
Ainda que não se refira diretamente à escravidão faz-se referência ao fato de
que os pobres são alienados de seus direitos.[1] Todavia,
os termos utilizados na frase nem sempre tem a conotação jurídica e não fica
evidente que o profeta esteja acusando diretamente os juízes.
Mais recentemente os interpretes tem optado em relação ao termo “saddiq” por
uma ênfase socioeconômica, de maneira que a esfera de ação não é propriamente
os tribunais, mas o das relações comerciais. Deste modo, o profeta denuncia os
credores que no ímpeto frio e monetarista de recuperarem o dinheiro emprestado ou
aplicado não se importam de fazerem dos devedores escravos que serão vendidos
como escravos e/ou mercadoria para terem suas dívidas quitadas, tendo em alguns
casos famílias inteiras sendo arroladas no processo e vendidas como escravos.
“e [vendem] o necessitado
[pobre] por um par de sandálias”
Ainda que pareça uma mera repetição da frase anterior, há uma diferença em
relação ao que sofre a ação escravagista e o motivo. O sujeito “ebyôn” aqui é
definido como sendo o “pobre, necessitado de ajuda”. Amós faz diversas
referências a este segmento social (2.6; 4.1; 5.12; 8.4,6) sempre em um
contexto de opressão e injustiça. Essas pessoas são escravizadas e vendidas
pelos credores, oprimidas pelos poderosos, desamparados pelos tribunais,
pisoteadas e compradas e/ou trocadas por um par de sandálias. O “ebyôn” é
aquele que não tem propriedade, de maneira que no Código da Aliança são
contraponto dos proprietários de terras e das colheitas (Ex 23.11). Desta
forma, não poderiam contrair grande dívidas, de modo que por causa de uma
divida irrisória acabavam sendo arrolados como escravos e vendidos. E de fato,
a expressão “um par de sandálias” surge novamente em (8.6) indicando uma
quantia monetária exígua. Seja qual for a ótica interpretativa, fica evidente a
perversidade do sistema que transforma pessoas em mercadoria, seres humanos em
objetos mobiliários.
Comentado estes dois versos Sincre afirma com muita propriedade:
De fato,
o primeiro caso demonstra o desprezo pela pessoa do devedor; o segundo, a
desproporção entre a dívida pequena e a escravidão. No primeiro, a escravidão
poderia ter justificativa, mas é desumana; no segundo, não há justificativa
alguma. (2011, p. 136).
Estas duas acusações contra qualquer tipo de escravidão coaduna com o que Amós
havia dito anteriormente (1.6-9), quando abertamente condena as deportações e o
comércio escravagista. Agora apenas reforça especificando a condenação deste
ato vil de transformar uma pessoa, quando não uma família inteira, em escravos
quer seja pela justificativa de uma grande divida contraída ou pior ainda,
mediante uma divida irrisória.
Diferentemente de do profeta Eliseu que paliativamente optou por estabelecer um
fundo financeiro para auxiliar aqueles que corriam o risco de caírem nesta
vergonhosa situação escravagista (2 Rs 4.1-7), Amós rejeita aberta e
veementemente toda e quaisquer espécie de escravagismo, quer por questões de
guerras quer seja por questões econômicas. Ele condena qualquer um que se
utiliza de artifícios legais para cercear a liberdade do próximo; ninguém tem o
direito moral de transformar o outro em objeto, seja quais forem as razões
alegadas. As leis mosaicas foram promulgadas para defesa dos mais fracos (Ex
21.2ss. 7ss.; Dt 15.12ss), mas jamais para serem instrumentos de opressão e
escravidão.
O que mais pesava no coração do profeta era ver que os israelitas, com este
comportamento condenável e vil, se assemelhavam cada vez mais com as outras
nações vizinhas (1.6), que não possuíam a revelação da vontade de Deus, como
eles haviam recebido por meio de Moisés. A Torá (Lei, Instrução, Ensino) de
Deus estava sendo diariamente envilecida e distorcida para servir de
instrumento de restrição do direito dos mais fracos e desvalidos e sendo colocada
a serviço da autossatisfação de uma casta de privilegiados.
Desta forma, com um estrondoso rugido por justiça, Amós rompe as imensas
barreiras culturais e éticas de sua época e antecipa em milhares de anos a
verdade imutável de que absolutamente nada, muito menos questões monetárias,
pode ser motivo para escravizar uma única pessoa que seja.
A banalização da vida humana é o câncer que tem destruído os tecidos das
sociedades no transcorrer dos séculos e cujo fedor da sua decomposição começa a
ser sentindo por nossas narinas. Quanto mais se descaracteriza o ser humano,
mais rapidamente a sociedade se decompõe. Enquanto uma pessoa não valer mais do
que um par de sandálias (mesmo que sejam as legitimas havaianas),
não haverá esperança para a sociedade. A única solução para esta nossa
sociedade é uma volta para Deus e Sua vontade expressa nas velhas páginas da
Bíblia. E esta volta a Deus é demonstrada na revalorização da vida, no amor que
se manifesta no próximo como sendo parte de mim mesmo.
Da mesma forma como a religião israelita era apenas virtual e voltada para
satisfação hedonista de sua casta de lideres religiosos e classes sociais
ascendentes, assim também tem sido o evangelicalismo brasileiro. As palavras de
Amós se aplicam perfeitamente ao momento atual deste evangelicalismo ritualista
e pomposo, com seus templos cada vez mais grandiosos e suntuosos, mas
completamente inócuo e estéril no que concerne à justiça e aos direitos dos que
sofrem:
Aborreço, desprezo as vossas festas, e as vossas assembleias solenes não
me dão nenhum prazer. E, ainda que me ofereçais holocaustos, e ofertas de
manjares, não me agradarei delas: nem atentarei para as ofertas pacíficas de
vossos animais gordos. Afasta de mim o estrépito dos teus cânticos; porque não
ouvirei as melodias dos teus instrumentos. (Am 5:21-23).
Em aberto contraste com pseuda religiosidade israelita o profeta Amós declara a
genuína religião proposta por Deus quando do estabelecimento de Sua Aliança: “Corra,
porém o juízo como as águas, e a justiça como o ribeiro impetuoso” (Am
5.24). Templos suntuosos e rituais ortodoxos ou heterodoxos tornam-se inúteis
quando não há manifestação concreta de amor ao próximo, de valorização da vida,
de dignificação do semelhante.
Para o profeta Amós nenhuma religião que vive em função de si mesma, que
compactua com a exploração do próximo, que menospreza os desvalidos, de nada
vale. Para ele, que expressa o pensamento de Deus, de nada vale ser religioso
se não se busca a justiça e a equidade. Amós desnuda a hipocrisia
daqueles que vivem apenas da aparência de piedosos, mas que são na verdade
lobos ferozes que não tem qualquer remorso em escravizar os desvalidos desses
dias. Para tais religiosos as pessoas não valem mais do que um par de
sandálias.
Cultos dominicais, cultos três vezes ao dia, grandes concentrações com milhares
de ouvintes, show gospel, venda de milhões de cds, construção de mega
templos, pregadores, missionários, bispos e apóstolos viajando de
jatinhos, nada disso tem qualquer valor ou se mantém em pé diante da proposta
evangélica de Jesus, que abrindo mão de Sua glória eterna, encarnou, viveu e
entregou-se totalmente em favor do ser humano. Que relação há entre o culto e a
justiça e o amor ao próximo? Esta questão nos coloca no cerne da religião dos
profetas, de Jesus e dos apóstolos.
Mas assim como reagiu o sacerdote Amazias, instigando o rei Jeroboão II contra
o profeta e menosprezando a mensagem de Amós (7.10-12), também hoje as
mensagens dos profetas estão sendo menosprezadas, como se não tivessem nada a
ver com a nossa realidade. Os evangélicos e suas lideranças eclesiásticas não
aceitam qualquer tipo de repreensão e se sentem ultrajados se alguma voz se
levantar para corrigi-los. São pessoas totalmente dominadas pela soberba e
autossuficiência e mensagem nenhuma haverá de fazê-los mudaram suas condutas
antagônicas aos princípios bíblicos.
Em um último esforço Amós chama atenção dos israelitas para as consequências
nefastas sofridas pelos seus vizinhos próximos: Calne, Hamate e Gate (cf. Am
6.2) que foram dizimadas conforme oráculos anteriores. O mesmo certamente
acontecera aos Samaritanos se não fizerem uma conversão para Deus, abandonando
o caminho da prepotência e da injustiça.
Apesar dos israelitas não terem qualquer motivo para se acharem melhores do que
seus vizinhos em ruínas, eles fizeram ouvidos ocos à mensagem de Amós e
continuaram oprimindo os pobres e humildes (cf. Am 8.4), distorcendo a justiça
e tornando a vida dos desfavorecidos mais amarga. O fato de conhecerem a Torá
não produziu neles a bondade e a justiça. O rugido profético ecoado por todo
Israel a partir de sua capital Samaria foi totalmente ignorado.
No Brasil as pedras têm clamado em virtude de que os possuidores da mensagem
evangélica permanecem calados, buscando tão somente seus próprios interesses
mesquinhos. E para maior constrangimento as bandeiras de fraternidade e justiça
têm sido hasteadas por pessoas e segmentos que não estão comprometidos com os
princípios evangélicos.
Apenas nos finais da década de 50 e primeiros anos da década de 60 os
evangélicos esboçaram tremular com entusiasmo e intrepidez as bandeiras da
justiça e fraternidade. Mas diferentemente do profeta Amós que persistiu
fielmente em seu ministério profético, os que hastearam estas bandeiras não
resistiram às pressões que lhes foram impostas e recolheram seus pendões, para
nunca mais tremularem. Quem perdeu não foram apenas os evangélicos, que uma vez
mais optaram por permanecerem meros coadjuvantes e não protagonistas das
mudanças, mas o próprio país que permanece afundando em um sistema cruel de
injustiças e corrupção.
“porque vendem por prata o justo”
“e [vendem] o necessitado por um par de sandálias”
Utilização livre desde que citando a fonteGuedes, Ivan PereiraMestre em Ciências da Religião.Universidade Presbiteriana Mackenzieivanpgds@gmail.comOutro BlogReflexão Bíblicahttp://reflexaobiblica.spaceblog.com.br/
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