quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Pentateuco: Por Que Temos que Ouvir Moisés Hoje?



            Os cristãos tem uma tendência natural para minimizar o valor do Primeiro Testamento e particularmente o Pentateuco e/ou Lei de Moisés.[1] Na mentalidade cristã ocidental é difícil encontrar muito sentido nesse conjunto de leis que foram dadas aos israelitas a milhares de anos atrás. Afinal temos o Segundo Testamento e tudo que um bom cristão precisa saber está contido nele. O fato de que a revelação de Deus é progressiva e que toda Escritura é inspirada igualmente por Deus fica bem nos livros de teologia, mas na práxis cristãs isso está muito longe de ser uma realidade.
Nos próprios púlpitos evangélicos muito pouca atenção recebem as literaturas contidas no Primeiro Testamento. Mesmo aqueles que ainda mantêm uma tradição de pregação expositiva a preferência é muito maior pelas literaturas neotestamentárias do que pelas veterotestamentárias.  E destas últimas há uma seletiva escolha, evitando o quanto possível as literaturas mais antigas mosaicas, quando muito expondo alguns capítulos “chaves” e/ou “messiânicos” destes cinco primeiros livros da Bíblia. A Torá, mais precisamente o Pentateuco é o centro do Primeiro Testamento e parte essencial da Bíblia. Esta simples apreciação deveria estimular a sua leitura. Por esta razão creio que a pergunta deste artigo deve ser respondida com acuidade: Por que temos que ouvir Moisés hoje?
            Evidente que um simples artigo não é suficiente para abordarmos todos os ângulos desta questão, mas a pretensão é apenas despertar o interesse dos leitores para uma revalorização destas literaturas mosaicas que se constituem na verdade no fundamento de todo o processo escriturístico bíblico inspirado.
            Inicialmente é preciso resgatar o sentido correto do termo Torá, tão caro aos israelitas, mas completamente desconhecidos pelos leitores cristãos. Para isso é necessário uma interpretação dos textos bíblicos dentro de sua moldura histórico-social, partindo sempre do valor intrínseco e extrínseco da própria Torá em sua formatação canônica, pois quando saímos desta formação canônica adentramos em caminhos movediços e todos os nossos esforços produziram pouco ou quase nenhum resultado substancial e edificante. Os caminhos fora da concepção canônica da Torá são excelentes campos acadêmicos para toda sorte de desvarios teóricos e hipotéticos que colocam os holofotes nestes viajantes e seus personalismos (carreiras acadêmicas e literárias), mas escondem o valor infinitamente maior do próprio texto e sua mensagem nele contida. A genuína exegese e hermenêutica é aquela em que o texto é maior do que aquele que se esforça em interpretá-lo.
            Em algum tempo a Torá passou a ser conceituada como “Lei” e gradativamente foi se constituindo no contraponto do “Evangelho”. Mas esta interpretação perdeu muito de sua força ao longo dos últimos anos, todavia serviu para se criar um preconceito em relação à Torá por parte dos cristãos de forma geral.
            A palavra “torah” originalmente está relacionada ao ensinamento dos pais aos seus filhos pequenos de forma a introduzi-los nos caminhos da vida e evitar os caminhos de morte (Pv 1.8; 6.20; cf. 4.1s; 31.26). O termo foi evoluindo em seu sentido e passou a se referir à orientação, instrução e normas que deveriam ser acatadas por todos os israelitas. A Torá tornou-se o instrumento tanto dos sacerdotes quantos dos profetas para ensinar e corrigir o povo e a própria nação em relação à vontade de Deus. É pela Torá que a nação foi julgada e somente pelo arrependimento sincero e o retorno à Torá é que se torna possível sua restauração à comunhão com Deus. Todo o culto e sacrifícios alienados da obediência à Torá torna-se escarnio contra Deus. Quando Esdras retorna para Jerusalém sua função é de trazer o povo à consciência da Torá. O salmista compõe o mais longo de todos os salmos canônicos dedicado totalmente à importância da Torá para a vida do genuíno fiel piedoso.
            Portanto, a Torá não é apenas um código frio e insensível de Leis religiosas, mas a Palavra de Deus que ensina, edifica e atraia o piedoso israelita e deve atrair todo genuíno cristão à usufruir uma comunhão pacifica com Deus. Naquele tempo através de sacrifícios e hoje através de Cristo – o sacrifício perfeito.
            O conceito puramente legalista da Torá está fortemente vinculado ao preconceito contra o judaísmo, que desde os primórdios sempre se opôs fortemente e até violentamente (cf. Saulo de Tarso) contra os cristãos. Este antagonismo pela Torá ficou mais evidenciado após o chamado período iluminista. Uma resposta positiva é resgatar a unidade que existe entre a Lei e a Aliança – não há Aliança sem a Lei assim como a Lei perde totalmente seu sentindo sem o contexto da Aliança. Deste modo ninguém tem autoridade para separar o que Deus perfeitamente uniu. O Evangelho é a expressão plena da Torá, assim como Jesus Cristo é a expressão máxima de Deus.
            Ainda que originalmente a Torá tenha sido designada a um povo especifico – Israel/Judá, com a qual estabelece uma Aliança, ela nunca ficou restrita, pois sua aplicação deveria ser expandida a todos os povos. O debate ocorrido em Atos 15 não se refere abolição da Torá, mas a não colocar sobre os cristãos gentios a carga cultural judaica e as lideranças da jovem igreja cristã ali reunida conseguiram se aperceberem disso.
Em nenhum momento algum escritor bíblico faz qualquer menção de que a Torá é apenas para os judeus e isso por si só deve nos levar ao máximo de cuidado quando minimizamos sua relevância para os nossos dias. O evangelista Mateus enfatiza que nenhum ponto da Torá deve ser refutado como desnecessário (Mt 5.17ss) e que todos os discípulos devem observá-la e obedecê-la (Mt 23.2). Igualmente Paulo, apóstolo dos gentios, declara explicitamente que a Torá é “santa, justa e boa” (Rm 7.12) e que não há qualquer contradição entre a Lei e o Evangelho que ele anunciava – tanto a judeus quanto a gentios. A valorização e observância da Torá não implica em que o cristão torna-se judeu.
O grande perigo de se relativizar e minimizar o valor intrínseco e extrínseco da Torá e de toda literatura do Primeiro Testamento é perder de vista que há um único Deus que se expressa tanto no Primeiro quanto no Segundo Testamento, assim como uma única Aliança que se renova na pessoa e obra de Jesus Cristo.
Outro perigo é que ao abandonarmos a Torá empobrecemos a significância do próprio Evangelho que nela se fundamenta. O menosprezo pela Torá é apenas um reflexo do menosprezo pelo próprio Evangelho. Ao resgatarmos o valor da Torá estaremos contribuindo para uma valorização do próprio Evangelho.
Mas a desvalorização da Torá não é privilégio de nossos dias, pois desde os dias posteriores de Moisés o povo israelita sempre teve dificuldade em aperceber o quanto Deus leva a sério Sua Palavra. Um extrato desse relaxo com a Torá está nas profecias de Oséias (séc. VIII a.C.) quando ele declara como boca de Deus aos israelitas de seus dias: “Ainda que eu lhes escreva de mil maneiras as minhas leis, elas são consideradas como algo estranho para eles” (Os 8.12 [perícope - 8.1-14]). O profeta conhece e reconhece as “leis” (Torá) de Deus, mas para seus ouvintes os israelitas (efraimitas) elas se tornaram estranhas. O mais lamentável é que a função dos sacerdotes era justamente instruir e fazer lembrar a Torá no coração e na mente do povo, mas Oséias e seus demais companheiros profetas são obrigados a confrontar esta nefasta deficiência, com raríssimas exceções, sacerdotal. E como ecoando através dos séculos os profetas repetem sistematicamente as palavras do velho sacerdote Samuel ao negligente rei Saul – “obediência [aos mandamentos] é muito melhor do que sacrifícios”. Mas se antes o sacerdote Samuel era a consciência do rei Saul, nos dias de Oséias a realidade era completamente outra e os profetas tinham que ser a consciência tanto dos sacerdotes quanto do próprio povo. E se o profeta Oséias, bem como seus colegas do século VIII, reconhece essas “mil maneiras” das leis de Deus, é possível pensar que elas estão preservadas em forma escrita e acessível, mas elas são vistas em Israel como algo estranho {zãr) o que incorre em desvios da vontade expressa de Deus e portanto danoso e perigoso para a nação e o próprio povo.
Nos dias de Jesus a situação não é diferente, pois em determinado momento de seu ministério em que seus adversários religiosos fazem diversas e infundadas acusações contra Ele, a resposta de Jesus foi: “vocês erram, pois não conhecem as Escrituras, e são elas que testificam de mim”. O judaísmo, com algumas poucas exceções, havia se emaranhado em uma teia de tradições orais, a ponto de perder contato com as Escrituras de fato. E por abrirem mão da Torá (aqui já englobando toda literatura do Primeiro Testamento) os judeus haviam perdido a capacidade de discernir entre o genuíno e o falso – e quando isso ocorre o falso acaba por predominar. A incapacidade deles em aceitarem Jesus Cristo como o Messias era decorrente do abandono deles da Torá em favor das normas produzidas por eles mesmos e que alimentava toda a estrutura religiosa deles, as quais Jesus sempre contestou e quando Ele confronta esta religiosidade judaica com a expressão “está escrito” é justamente contrapondo a Torá às múltiplas leis produzidas nas entranhas do judaísmo e que serviam apenas para sustentar o sistema religioso centrado no Templo e não no Deus do templo.
Todos os cristãos de no mínimo três séculos tiveram como única literatura bíblica a Torá (Primeiro Testamento). Somente no século IV da era cristã o Segundo Testamento foi definitivamente estabelecido, mas jamais desassociado do Primeiro. Essa junção entre o Primeiro e o Segundo Testamento demonstra o valor que a Torá reteve entre as primeiras gerações de cristãos e que somente foi se esvaindo na mesma proporção em que a própria Igreja Cristã foi se emaranhando (assim como ocorreu com o judaísmo no tempo de Jesus) em suas próprias “leis” e “tradições” eclesiásticas.
Lamentavelmente hoje a Torá, mais especificamente o Pentateuco, tornou-se para o cristão do século XXI algo estranho (como nos dias de Oséias). A desvalorização da Torá, bem de como todo o Primeiro Testamento, é proporcional à desvalorização da própria concepção de Deus na mente e no coração dos cristãos pós-moderno. A banalização de Deus na prática  vivencial do cristianismo atual revela a total indiferença e desconhecimento das Escrituras e mais acentuadamente suas primeiras literaturas. O que Marcião (Marcion) tentou no segundo século cristão e fracassou, rejeitar toda literatura do Primeiro Testamento, os cristãos do século vinte e um têm feito na prática – esvaziando as primeiras literaturas bíblicas de seu valor e relevância para a fé e prática. E a Torá que para Paulo e as primeiras gerações de cristãos era algo tão precioso, para as gerações modernas e pós-modernas tem sido tratado como algo estranho e descartável. Não sem razão vivemos tempos em que a fé cristã tem perdido dia-a-dia sua capacidade de luz e sal da terra.
Modificando um pouco a pergunta inicial desse artigo: Ainda hoje somos capazes de ouvir Moisés?

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/

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[1] Os estudos sobre o Pentateuco mudaram radicalmente nesses quinze ou vinte anos. Desmoronou-se o paradigma alicerçado pela teoria documentária, e ainda não veio à luz um novo paradigma.

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