Ao
iniciarmos nossa visão panorâmica da história da interpretação, deve ficar
evidente que estamos delimitando o assunto aos intérpretes cristãos, já que
nosso objetivo principal é conhecer o desenvolvimento da interpretação cristã.
Outra delimitação necessária é de ordem cronológica, pois vamos examinar a
história a partir do terceiro século. Certamente existe uma prática
hermenêutica intensa antes das escolas de Alexandria e Antioquia que elegemos
como o marco de nosso estudo, mas, salvo outro entendimento, é a primeira vez
na história que se pode usar o termo “escola”.
1 -
A Escola de Alexandria
A
famosa cidade egípcia era considerada uma das maiores da Antiguidade,
especialmente, pelo seu famoso Farol (uma das sete maravilhas do mundo antigo)
e sua biblioteca (a maior do mundo antigo). Ali floresceu uma importante comunidade
judaica que nos legou uma grande obra: a Septuaginta (tradução do texto
hebraico para o grego). Quanto o evangelho chegou àquela cidade houve ampla
aceitação, resultando em rápido crescimento da comunidade cristã. Alexandria
ficou famosa pelo método alegórico de interpretação. É verdade que os
seguidores dessa escola não ignoravam o sentido literal dos textos.
O
método de interpretação consagrado em Alexandria tem suas raízes na filosofia
grega. Podemos com certa convicção afirmar que pelos menos três filósofos
influenciaram, direta ou indiretamente, esta escola. O primeiro é Heráclito
(540—475 a.C.), que, para lidar com as dificuldades de uma abordagem literal às
obras de Homero (A Ilíada e Odisseia), concebeu um sentido mais profundo de
interpretação, que recebeu o nome de hiponóia. Outro filósofo que dá a sua
contribuição a Alexandria é Platão (427-347 AC). Segundo ele, nosso mundo é uma
representação do mundo perfeito (mundo das ideias). Por isso, as coisas do
mundo material são reflexos (alegorias) dos conceitos e verdades espirituais do
mundo das ideias. A terceira influência à escola de Alexandria foi o filosofo
judeu Filo (20 AC e 50 DC). Ele foi sempre fiel às tradições judaicas nas quais
fora criado, demonstrando grande apreço às Escrituras. Filo também admirava os
escritos do Platão, seu grande herói, ao lado de Moisés. Por isso, se esforçou
para conciliar os ensinos de Moisés com as ideias do filosofo grego. Nesta
tentativa, lançou mão da alegoria (dizer uma coisa em lugar de outra)[1].
1.1.
Principais Representantes
Clemente
de Alexandria (150-215 d.C.)
Considerado
uns dos primeiros a lidar seriamente com as questões da interpretação bíblica.
Clemente de Alexandria entendia que as Escrituras tinham um sentido oculto que
somente era revelado ao verdadeiro discípulo. Por isso, lançou mão da alegoria
para descobrir as verdades ocultas e para harmonizar os dois Testamentos.
Estabeleceu uma teoria que atribuía cinco sentidos às Escrituras (histórico,
doutrinai, profético, filosófico e místico). Apesar disso, ele sempre
privilegiou o sentido alegórico.
Orígenes
(185-253 d.C.)
O
notável sucessor de Clemente é considerado o maior erudito de seu tempo. Como
Filo, entendia que a perspectiva platônica era a melhor maneira de entender a
Bíblia. Reconhecia que o sentido literal era valioso, especialmente para os
principiantes, mas às vezes podia dificultar uma compreensão mais espiritual
das Escrituras. Também sob a influência da filosofia grega, ele enxergava nas
partes constitutivas do ser humano (segundo ele: corpo, alma e espírito) uma
analogia às Escrituras que teriam assim três sentidos: o corpo, o sentido literal, para os principiantes; a alma, o sentido moral, para os que progrediram um pouco; o espirito, o sentido alegórico ou místico, para os espirituais.
Vejamos
alguns exemplos da interpretação alegórica, oferecidos por Lopes (2004, p.133):
*Rebeca
vem tirar água do poço e encontra o servo de Abraão (Gn 24.15-17) - significa
que diariamente devemos vir aos poços da Escritura para ali nos encontrarmos
com Cristo;
*Faraó
mandando matar os meninos e preservando as meninas hebreias (Ex 1.15-16) - os
meninos significam o espírito intelectual e sentidos racionais enquanto que as
meninas significam paixões carnais;
*As
seis talhas de pedra, que os judeus usavam para as purificações (Jo 2.6),
significam os sentidos moral e literal das Escrituras e às vezes, o espiritual;
*O
sentido verdadeiro (alegórico) da passagem sobre o divórcio (Mt 19.6) é a
separação da alma do seu anjo da guarda.
Parece-nos
que, neste momento do nosso estudo, é necessário fazer uma tentativa de
conceituar ou definir alegoria, mesmo que seja de maneira simplificada e
provisória. Nos exemplos que estamos observando, alegoria é uma figura de
linguagem que consiste na espiritualização da passagem. Na alegoria bíblica os
fatos históricos, eventos e personagens são vistos com um sentido espiritual. O
intérprete entende que o texto está dizendo “A” enquanto na verdade significa
"B". Segundo a Wikipédia:
Uma
alegoria (do grego allos,
“outro", e agoreuein,
“falar em público") é uma figura de linguagem, mais especificamente de uso
retórico, que produz a virtualização do significado, ou seja, sua expressão
transmite um ou mais sentidos que o da simples compreensão ao literal.
1.2.
Considerações
A
grande crítica ao método alegórico de interpretação da Escola de Alexandria
consiste no fato de que foram abertas portas para que o exegeta pudesse
interpretar o texto segundo sua conveniência, pois não foi estabelecido nenhum
princípio regulador que governasse a exegese alegórica. Mesmo assim, não
podemos ser simplistas e reduzir Alexandria a alegorias bizarras. É preciso
reconhecer que os seguidores desta escola, geralmente, nutriam motivos
considerados nobres, além de que muitos se tomaram notáveis pela erudição. As
suas principais contribuições são:
*Preocupação pastoral. Os
intérpretes de Alexandria adotavam a alegoria como uma tentativa de tomar o
texto bíblico, especialmente o Antigo Testamento, um documento cristão, logo,
relevante à Igreja. As Escrituras não eram apenas descritivas, mas também
normativas. Toda ela deveria ser tomada como regra de fé e prática;
*Preocupação doutrinária.
Alexandria procurou dar uma resposta aos judeus e a alguns heréticos que
procuravam deturpar as Escrituras. Enquanto os judeus defendiam a ideia de que
o Antigo Testamento era exclusivo para eles, havia aqueles, como Marcião, que
não podiam conceber o mesmo Deus para o Antigo e para o Novo Testamento e,
assim, rejeitavam quase por completo o A T. Coube, então, aos intérpretes
alexandrinos o enfrentamento do desafio de harmonizar os dois testamentos.
Manual de Hermenêutica Bíblica
Me. Israel Sifoleli
Mestre em Ciências da Religião
Docente da Faculdade Latino-americana
(FLAM)
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Uma Voz Discordante
Referências Bibliográficas
SIFOLELI,
Israel. Manual de hermenêutica bíblica.
São Paulo: Fonte Editorial, 2016.
DOCKERY,
S. David. Hermenêutica Contemporânea à
luz da Igreja Primitiva. Tradução Álvaro Hattnher. São Paulo: Vida, 2005
(pp. 73-123).
LOPES,
Augustus Nicodemus. A bíblia e seus
interpretes. São Paulo: Cultura Cristã (pp. 129-139).
HALL,
Christopher A. Lendo as escrituras com
os Pais da Igreja. Tradução Rubens Castilho. Viçosa (MG): Ultimato, 2000
(pp. 126-165).
[1] Para
um estudo mais detalhado sobre Filo, ver LOPES, A. N. A Bíblia e seus
intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 83-96.
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