quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Hermenêutica: As Primeiras Escolas de Interpretação - Alexandria




Ao iniciarmos nossa visão panorâmica da história da interpretação, deve ficar evidente que estamos delimitando o assunto aos intérpretes cristãos, já que nosso objetivo principal é conhecer o desenvolvimento da interpretação cristã. Outra delimitação necessária é de ordem cronológica, pois vamos examinar a história a partir do terceiro século. Certamente existe uma prática hermenêutica intensa antes das escolas de Alexandria e Antioquia que elegemos como o marco de nosso estudo, mas, salvo outro entendimento, é a primeira vez na história que se pode usar o termo “escola”.
1 - A Escola de Alexandria
A famosa cidade egípcia era considerada uma das maiores da Antiguidade, especialmente, pelo seu famoso Farol (uma das sete maravilhas do mundo antigo) e sua biblioteca (a maior do mundo antigo). Ali floresceu uma importante comunidade judaica que nos legou uma grande obra: a Septuaginta (tradução do texto hebraico para o grego). Quanto o evangelho chegou àquela cidade houve ampla aceitação, resultando em rápido crescimento da comunidade cristã. Alexandria ficou famosa pelo método alegórico de interpretação. É verdade que os seguidores dessa escola não ignoravam o sentido literal dos textos.
O método de interpretação consagrado em Alexandria tem suas raízes na filosofia grega. Podemos com certa convicção afirmar que pelos menos três filósofos influenciaram, direta ou indiretamente, esta escola. O primeiro é Heráclito (540—475 a.C.), que, para lidar com as dificuldades de uma abordagem literal às obras de Homero (A Ilíada e Odisseia), concebeu um sentido mais profundo de interpretação, que recebeu o nome de hiponóia. Outro filósofo que dá a sua contribuição a Alexandria é Platão (427-347 AC). Segundo ele, nosso mundo é uma representação do mundo perfeito (mundo das ideias). Por isso, as coisas do mundo material são reflexos (alegorias) dos conceitos e verdades espirituais do mundo das ideias. A terceira influência à escola de Alexandria foi o filosofo judeu Filo (20 AC e 50 DC). Ele foi sempre fiel às tradições judaicas nas quais fora criado, demonstrando grande apreço às Escrituras. Filo também admirava os escritos do Platão, seu grande herói, ao lado de Moisés. Por isso, se esforçou para conciliar os ensinos de Moisés com as ideias do filosofo grego. Nesta tentativa, lançou mão da alegoria (dizer uma coisa em lugar de outra)[1].
1.1. Principais Representantes
Clemente de Alexandria (150-215 d.C.)
Considerado uns dos primeiros a lidar seriamente com as questões da interpretação bíblica. Clemente de Alexandria entendia que as Escrituras tinham um sentido oculto que somente era revelado ao verdadeiro discípulo. Por isso, lançou mão da alegoria para descobrir as verdades ocultas e para harmonizar os dois Testamentos. Estabeleceu uma teoria que atribuía cinco sentidos às Escrituras (histórico, doutrinai, profético, filosófico e místico). Apesar disso, ele sempre privilegiou o sentido alegórico.
Orígenes (185-253 d.C.)
O notável sucessor de Clemente é considerado o maior erudito de seu tempo. Como Filo, entendia que a perspectiva platônica era a melhor maneira de entender a Bíblia. Reconhecia que o sentido literal era valioso, especialmente para os principiantes, mas às vezes podia dificultar uma compreensão mais espiritual das Escrituras. Também sob a influência da filosofia grega, ele enxergava nas partes constitutivas do ser humano (segundo ele: corpo, alma e espírito) uma analogia às Escrituras que teriam assim três sentidos: o corpo, o sentido literal, para os principiantes; a alma, o sentido moral, para os que progrediram um pouco; o espirito, o sentido alegórico ou místico, para os espirituais.
Vejamos alguns exemplos da interpretação alegórica, oferecidos por Lopes (2004, p.133):
*Rebeca vem tirar água do poço e encontra o servo de Abraão (Gn 24.15-17) - significa que diariamente devemos vir aos poços da Escritura para ali nos encontrarmos com Cristo;
*Faraó mandando matar os meninos e preservando as meninas hebreias (Ex 1.15-16) - os meninos significam o espírito intelectual e sentidos racionais enquanto que as meninas significam paixões carnais;
*As seis talhas de pedra, que os judeus usavam para as purificações (Jo 2.6), significam os sentidos moral e literal das Escrituras e às vezes, o espiritual;
*O sentido verdadeiro (alegórico) da passagem sobre o divórcio (Mt 19.6) é a separação da alma do seu anjo da guarda.
Parece-nos que, neste momento do nosso estudo, é necessário fazer uma tentativa de conceituar ou definir alegoria, mesmo que seja de maneira simplificada e provisória. Nos exemplos que estamos observando, alegoria é uma figura de linguagem que consiste na espiritualização da passagem. Na alegoria bíblica os fatos históricos, eventos e personagens são vistos com um sentido espiritual. O intérprete entende que o texto está dizendo “A” enquanto na verdade significa "B". Segundo a Wikipédia:
Uma alegoria (do grego allos, “outro", e agoreuein, “falar em público") é uma figura de linguagem, mais especificamente de uso retórico, que produz a virtualização do significado, ou seja, sua expressão transmite um ou mais sentidos que o da simples compreensão ao literal.
1.2. Considerações
A grande crítica ao método alegórico de interpretação da Escola de Alexandria consiste no fato de que foram abertas portas para que o exegeta pudesse interpretar o texto segundo sua conveniência, pois não foi estabelecido nenhum princípio regulador que governasse a exegese alegórica. Mesmo assim, não podemos ser simplistas e reduzir Alexandria a alegorias bizarras. É preciso reconhecer que os seguidores desta escola, geralmente, nutriam motivos considerados nobres, além de que muitos se tomaram notáveis pela erudição. As suas principais contribuições são:
*Preocupação pastoral. Os intérpretes de Alexandria adotavam a alegoria como uma tentativa de tomar o texto bíblico, especialmente o Antigo Testamento, um documento cristão, logo, relevante à Igreja. As Escrituras não eram apenas descritivas, mas também normativas. Toda ela deveria ser tomada como regra de fé e prática;
*Preocupação doutrinária. Alexandria procurou dar uma resposta aos judeus e a alguns heréticos que procuravam deturpar as Escrituras. Enquanto os judeus defendiam a ideia de que o Antigo Testamento era exclusivo para eles, havia aqueles, como Marcião, que não podiam conceber o mesmo Deus para o Antigo e para o Novo Testamento e, assim, rejeitavam quase por completo o A T. Coube, então, aos intérpretes alexandrinos o enfrentamento do desafio de harmonizar os dois testamentos.

Manual de Hermenêutica Bíblica
Me. Israel Sifoleli
Mestre em Ciências da Religião
Docente da Faculdade Latino-americana
(FLAM)

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Referências Bibliográficas
SIFOLELI, Israel. Manual de hermenêutica bíblica. São Paulo: Fonte Editorial, 2016.
DOCKERY, S. David. Hermenêutica Contemporânea à luz da Igreja Primitiva. Tradução Álvaro Hattnher. São Paulo: Vida, 2005 (pp. 73-123).
LOPES, Augustus Nicodemus. A bíblia e seus interpretes. São Paulo: Cultura Cristã (pp. 129-139).
HALL, Christopher A. Lendo as escrituras com os Pais da Igreja. Tradução Rubens Castilho. Viçosa (MG): Ultimato, 2000 (pp. 126-165).



[1] Para um estudo mais detalhado sobre Filo, ver LOPES, A. N. A Bíblia e seus intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 83-96.

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