Lucas e Mateus são os evangelistas que registram os
acontecimentos anteriores ao nascimento de Jesus. Marcos não faz uma única
referência a tais acontecimentos, pois inicia com o ministério de João Batista
e o subsequente batismo de Jesus e o quarto evangelista João abre sua narrativa
nos transportando ao inicio da própria criação onde o Verbo (Jesus) estava com
Deus, de maneira que Jesus não somente não é parte da criação, como participa
efetivamente do ato criativo.
Ainda que Lucas e Mateus tratem dos mesmos acontecimentos
cada um deles elaboram suas respectivas narrativas de forma bem distinta. Ainda
que de forma incomum Mateus começa incluindo quatro mulheres na genealogia de
Jesus, algo realmente inédito para aquela época em que a mulher nem mesmo era
contada para efeito de senso, e faz o devido destaque à Maria, no que concerne
à revelação angelical de sua fecundação e sua resposta em fé e submissão à
vontade de Deus, a figura central na narrativa acaba sendo a figura de José
pelo qual os acontecimentos posteriores vão sendo desenvolvidos. Interessante
que no desenvolvimento da história da igreja cristã a figura de José vai
desaparecendo e a figura de Maria vai assumindo uma projeção que jamais foi
imaginada pelos evangelistas.
De forma distinta de seu colega, o evangelista Lucas
desenvolve sua narrativa centrada nas figuras das mulheres - Isabel, Maria, Ana
(a profeta). Toda ação é vista sempre pelo prisma destas mulheres que são
modelos de genuína fé e submissão à vontade de Deus. Os homens, ainda que
desempenhem alguma função narrativa, são deslocados para a periferia dos
acontecimentos (Zacarias, José e Simeão).
Outra característica peculiar a Lucas é a sua elaboração
da primeira “cantata natalina” da história cristã.
Nos dois primeiros capítulos o evangelista inclui ao menos quatro cânticos
referentes ao nascimento de Jesus:
O
cântico de Maria (1.46-55)
O
Cântico de Zacarias (1.67-79)
O
cântico dos anjos (2.14)
O
cântico de Simeão (2. 28-32)
O primeiro cântico é o que foi entoado por Maria logo
após ela ser comunicada pelo anjo do que Deus haveria de fazer nela e através
dela. Esse cântico tem sido denominado de “Magnificat” (1.46-55), por
ser o termo utilizado na primeira linha: “Minha
alma exalta (ou magnifica) o Senhor” (v. 46), ainda que muitas traduções
prefiram traduzir “Minha alma glorifica o Senhor”. Porém o
termo “magnifica”
(exalta) se aproxima mais do significa original grego. Porque o que Maria está
realmente fazendo é falar de quão grande é Deus; quão tremendo é Deus; ela está
magnificando a Deus, glorificando-o – isso é louvor em sua essência. E como
podemos magnificar a Deus? Nas Escrituras e particularmente no
saltério com seu conjunto de cento e cinquenta cânticos, somos ensinados que
magnificamos a Deus quando testemunhamos dele; quando proclamamos a respeito
dele e de seus poderosos feitos na nossa vida e na história de seu povo
(igreja). Neste sentindo tornamos Deus conhecido e grande para aqueles que
estejam sentindo falta dele em suas vidas ou estejam ignorantes quanto à
realidade Dele. É isso que Maria esta fazendo aqui: ela está dizendo – vejam o que Deus está fazendo em minha vida!
Este é o Deus em quem creio! Vou cantar sobre Ele para que todos possam saber
que é real.
A expressão “minha
alma” e “meu
espírito” revela que o cântico prove do mais intimo de seu ser e
emanado de seu coração, mas também em plena consciência e/ou inteligência para
discernir tudo quanto Deus está e fará nela e através dela. O perfeito louvor
amalgama de forma inseparável o coração e a mente – a alma e o espírito – todo cântico
que desassocia estas duas fontes tornam-se deficitários e não cumprem
plenamente a função para o qual eles devem ser compostos e entoados. Quando
plenamente submissos à vontade de Deus a inteligência (razão) e a emoção jamais
serão antagônicas, mas irmãs siamesas inseparáveis do perfeito louvor. Um
louvor que não sensibiliza o coração torna-se limitado e um louvor destituído de
inteligência bíblica torna-se perigoso.
O objetivo de Lucas ao incluir esta série de cânticos não
é apenas estético, mas tem uma função muito bem delineada dentro da catequese
progressiva que ele se propôs desde sua introdução. É da boca de Maria que
temos a primeira referência ao termo “salvador” (soter – v.47) que é um
titulo utilizado abundantemente no Primeiro Testamento para se referir as ações
de Deus em favor de seu povo, especialmente nos capítulos finais de Isaías
(relacionados peculiarmente à vinda do Messias) e nos Salmos. “Meu
salvador” – as palavras da jovem Maria expressa o quanto sabia
da necessidade de ser salva e de que jamais poderia alcançar essa salvação por
si mesma. Sua salvação somente poderia ser provida pelo seu Senhor (Adonai/Yahweh)
o Deus da aliança.
Outro arranjo literário de Lucas aparece neste cântico de
Maria, onde ela declara que Deus é grande e poderoso, pois “contemplou na
humildade da sua serva” (v.47). Quem era Maria? Uma jovem judia que estava
fazendo seu enxoval e sonhando com sua festa de casamento? O que ela tinha de
especial? Absolutamente nada. E por que Deus a escolheu? Unicamente mediante a
graça e misericórdia Dele. E não sou eu que estou falando isso é a própria
Maria quem o faz ao longo de todo o cântico descrevendo a si mesma (e a nós)
como humilde, faminta e como a mais humilde entre todas as servas (lit.
"escravas"). Ela nunca havia orado, imaginado ou sonhado com tão
grande privilégio. Ela jamais poderia subir até a glória de Deus, por isso,
Deus desceu até a mais humilde dentre todas as mulheres – Deus a escolheu
mediante sua graça. O reformador João Calvino sempre se lembrava de como Deus é
tão grande que pode Se tornar pequeno e se rebaixar e descer ao nosso nível. De
fato, tão grande que Ele pode se tornar pequeno e ser gerado no útero de Maria
e nascer dali.[1] A humildade de
Maria é exaltada por Deus ao vir sobre ela – esta inversão de situações e
valores será
uma das características marcantes da “salvação” ao longo de toda esta
narrativa evangélica lucana.[2]
Então Maria começa a recordar as maravilhosas
intervenções salvífica de Deus na história de Israel, destacando a figura de
Abraão (vv. 51-53) . Em seu cântico ela deixa claro que Deus está fazendo algo
grande nela, assim como, Ele tem feito ao longo de todas as gerações que lhe
antecederam. Deus está se preparando para isso há muito, muito tempo. Então,
ainda que seja uma experiência nova para ela, para Deus é o capítulo culminante
de uma história muito antiga, como diria Paulo – desde antes da fundação do mundo
– desde a primeira promessa de salvação em Gênesis 3.15. A graça de Deus está
conectada diretamente à promessa feita a Abraão (cf. Gn 12.3; 13.14-17; 15.5; e
Mq 7.20; Lc 1.73)[3]. A promessa era para sempre, o que significa literalmente,
até a consumação do século (Ash, 1980, p.45).
Na sequência do cântico Maria vai destacar através de pares
de figuras opostas - os orgulhosos
e os humildes, os que se elevam
e os que se abaixam, assim como os famintos e os abastados – e a extraordinária inversão de valores que Deus fará
através do nascimento desta criança: “dispersou os que no coração alimentavam pensamentos
soberbos. Derrubou dos seus tronos os poderosos e exaltou os humildes. Encheu
de bens os famintos e despediu vazios os ricos” (vv.51-53). O
escritor C. S. Lewis chamou esse cântico de: “uma canção terrível”, mas no sentido de sua
raiz latina, “terribilis”,
que significa surpreendente, arrepiante, uma música terrível no sentido de que
fala de uma jovem cantando sobre a dispersão dos orgulhosos e o afastamento dos
ricos e do transtorno de toda a ordem normal das coisas. É uma revolução total
das convenções sociais comuns. Ela fala de uma inversão espiritual e pessoal, onde
o crente será elevado (termo para ressurreição) e o que não crer (orgulhoso em sua própria imaginação) será
deixado para o juízo final. Se na primeira parte do cântico (v. 46-50) ouvimos
o ressoar dos salmos, nessa segunda parte podemos ouvir o eco da mensagem dos
profetas. Assim como os profetas (Oséias, Miquéias) Maria está declarando: Olha! Todos prestam atenção nas pessoas
bonitas, nos ricos, nos famosos, nos poderosos deste mundo; mas você sabe onde estão de fato os olhos de Deus? Ele
coloca seus olhos nos pequeninos como eu. Deus se lembrou de mim, olhou
para mim e veio ao meu encontro. É assim que Deus trabalha! Ele está
sempre levantando os humildes e confundindo os poderosos, essa temática se
tornará importante no restante da narrativa de Lucas. É provável que Jesus
tivesse em mente esse cântico de Maria, quando proferiu diante dos prepotentes
e arrogantes fariseus e escribas, a parábola de Lazaro e o rico. As palavras de
Abraão ao rico em tormentos são enfáticas: “Filho, lembre-se de que durante a sua vida você teve
tudo quanto queria [muito
dinheiro no bolso, saúde para dar e vender], e
Lázaro não teve nada [salário mínimo e aposentadoria aos 70 anos]. Portanto, agora ele está aqui sendo consolado, e
você sofrendo tormentos” (Lc 16.25).
Ao incluir este cântico de Maria em sua narrativa evangélica
Lucas quer deixar claro que Deus esta no controle completo das situações –
somente Ele tem competência e o poder de julgar e revelar os verdadeiros
valores, conforme tão precisamente declarou o salmista “Aquele que julga é Deus, abaixando a um, elevando a
outro” (Sl 75.8).
Antecipando um pouco é preciso destacar que na figura dos
orgulhosos, dos ricos, dos poderosos esta o reflexo dos detentores de um poder
político e religioso, não somente do judaísmo, mas em todo o mundo, que serão
os opositores contundentes da nova ordem estabelecida por meio de Jesus e seu
Evangelho do Reino. Portanto, nosso espanto diante das atrocidades contra os
cristãos é o esquecimento desta realidade cantada por Maria, encarnada por Jesus
na cruz do calvário e vivenciada pelos cristãos do primeiro século e de todos
os tempos até os dias atuais e continuara até o dia final.
Mas como tão claramente Maria declara, o mesmo Deus que
no passado inverteu os valores é o mesmo que haverá de estabelecer os novos
valores, conforme o projeto de sua “misericórdia” (elos - vv.50-54).
No final da narrativa, quando as mulheres retornam
testemunhando da ressurreição, não ficaria deslocado na boca delas esta parte
do cântico de Maria: “Ele
derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes”. E
assim cantava Paulo junto com seus irmãos e irmãs:
Quando,
porém, o que é corruptível se revestir de incorruptibilidade,
e
o que é mortal, de imortalidade,
então
se cumprirá a palavra que está escrita:
"A morte foi destruída pela vitória"
"Onde
está, ó morte, a sua vitória?”
“Onde
está, ó morte, o seu aguilhão?"
O
aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a Lei.
Mas graças a
Deus, que nos dá a vitória
por meio de
nosso Senhor Jesus Cristo.
Portanto,
meus amados irmãos, mantenham-se firmes, e que nada os abale. Sejam sempre
dedicados à obra do Senhor, pois vocês sabem que, no Senhor, o trabalho de vocês
não será inútil.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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Galeria
Natalina de Lucas: Anunciação a Zacarias
Maria
e Isabel: Um Encontro Harmonioso entre o Antigo e o Novo Testamento (natal)
Evangelho
Segundo Lucas: O Evangelho da Infância
Natal
em Imagens – A Anunciação
Natal:
Relatos Evangélicos do Nascimento de Jesus
Natal:
O Nome de Jesus - Conselheiro (Isaías 9.6)
Natal:
Entre o Natal e a Páscoa há uma Cruz (Reflexão)
Quando
o Natal foi Comemorado em 25 de dezembro?
Referências
Bibliográficas
ASH,
Anthony Lee. O Evangelho Segundo Lucas. Tradução Neyd V.
Siqueira. São Paulo: Editora Vida Cristã, 1980.
BETTENCOURT,
Estevão. Para Entender os Evangelhos. Rio de Janeiro:
Agir, 1960.
CARSON
D. A., DOUGLAS, J. Moo & MORRIS, Leon. Introdução ao Novo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.
CASALEGNO,
Alberto. Lucas – a caminho com Jesus missionário. São Paulo:
Edições Loyola, 2003.
CHAMPLIN,
Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado – versículo por
versículo, v. II. São Paulo: Millenium, 1987.
________________________. Enciclopédia
de Bíblia, Teologia e Filosofia, v.3. São Paulo: Candeia, 1995.
LEAL,
João. Os Evangelhos e a Crítica Moderna. Porto: Livraria
Apostolado da Imprensa, 1945.
MORRIS,
Leon L. Lucas – introdução e comentário. São Paulo: Edições
Vida Nova, 2008. [Série Cultura Cristã].
TENNEY,
Merrill C. O Novo Testamento - sua origem e análise, 2a ed. São
Paulo: Vida Nova, 1972.
[1] Philip Yancey, tratando sobre este
ponto, ao comentar o texto de João 1 “A palavra se tornou carne;” ele declara: “Realmente,
é incrível pensar em Deus o Filho se tornando um bebê humano, mas antes disso
Ele era um zigoto [célula mater do embrião humano]. A Palavra tornou-se
microscópica; a Palavra tornou-se invisível para o olho humano, que é o que um
zigoto no ventre de Maria teria sido”.
[2] “É semelhante a canção de Ana em I
Samuel 2.1-10. Ambos os poemas mostram como Deus ajuda os pobres e humildes em
vez dos ricos e poderosos (Sf 2.3; Mt 5.3), e como Deus favoreceu Israel desde
as promessas a Abraão (Dt 7.6).” Anthony Lee Ash, O Evangelho Segundo Lucas,
ed. Vida Cristã, p.43.
[3] Lucas menciona Abraão em (1.73;
3.8,34; 13.16,28; 16.22-25,29,30; 19.9; 20.37).
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