Com exceção das igrejas que seguem o
Calendário Cristão em suas liturgias, a grande maioria das denominações
evangélicas e praticamente todas aquelas denominadas neopentecostais, acabam
por se esquecerem deste marco fundamental do Projeto Redentor de Deus – a ascensão
de Jesus Cristo.[1] Restringimo-nos à Pascoa e
ao Natal e nos esquecemos da Ascensão e do Pentecostes. Desta forma acabamos
por empobrecer o Cristianismo de dois momentos únicos de sua História
iniciante.
O evangelista Lucas escreve sua obra
em dois volumes Lucas-Atos: na primeira parte ele se concentra na Pessoa de
Jesus até sua morte e ressurreição e no segundo volume se concentra na expansão
da mensagem cristã efetuada pela ação do Espírito Santo através dos apóstolos e
discípulos.
Mas ele vincula os dois volumes,
pois da mesma forma que conclui o primeiro volume (Evangelho) é a forma com que
abre o segundo volume (Atos):
Evangelho Lucas (24.50,51)
|
Atos (1.6-11)
|
Tendo-os
levado até as proximidades de Betânia, Jesus ergueu as mãos e os abençoou.
Estando
ainda a abençoá-los, ele os deixou e
foi elevado ao céu.
Então
eles o adoraram e voltaram para Jerusalém com grande alegria.
E
permaneciam constantemente no templo, louvando a Deus.
|
Então os que estavam reunidos
lhe perguntaram: "Senhor, é neste tempo que vais restaurar o reino a
Israel?"
Ele lhes respondeu: Não lhes
compete saber os tempos ou as datas que o Pai estabeleceu pela sua própria
autoridade.
Mas receberão poder quando o
Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém,
em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra.
Tendo dito isso, foi elevado às alturas enquanto eles
olhavam, e uma nuvem o encobriu da vista deles.
E eles ficaram com os olhos
fixos no céu enquanto ele subia. De repente surgiram diante deles dois homens
vestidos de branco, que lhes disseram: "Galileus, por que vocês estão
olhando para o céu? Este mesmo Jesus, que dentre vocês foi elevado aos céus,
voltará da mesma forma como o viram subir".
|
Na conclusão de sua narrativa
evangélica Lucas é extremamente sucinto na referência da ascensão, mas na
abertura de Atos ele faz uma pequena, mas interessante expansão da referência
sobre esse momento em que Jesus se despede de seus discípulos e ascende aos
céus para reassumir seu trono glorioso e celestial.
Quando examinamos apenas as
referências de Lucas (e Marcos) podemos concluir equivocadamente que não houve
um período de intervalo longo entre a ressurreição e a ascensão de Jesus.[2]
Todavia, quando examinamos o conjunto narrativo somos informados por João que
após a ressurreição Jesus esteve em ocasiões diferentes com seus discípulos: a
primeira é a Maria Madalena no próprio túmulo (Marcos 16.9 e João 20.11);
depois para as mulheres no retorno do túmulo vazio (Mateus 28.9); depois aos dois
discípulos de Emaús (Lucas 24.13 e Marcos 16.12); depois, aos discípulos
reunidos no cenáculo sem Tomé (Lucas 24.36, João 20.19 e Marcos 16.14); depois
aos discípulos, com a presença de Tomé (João 20.24); depois, durante a pesca
milagrosa relatada por João (21); depois, em uma montanha na Galileia (Mateus 28.16
e Marcos 16.15); então em Jerusalém (Lucas 24.44); e finalmente durante a
Ascensão (Marcos 16.19 e Lucas 24.50). Mas
agora, era o momento de retornar ao Pai.
As poucas referências históricas à
ascensão tem produzido uma série de críticas e elaboras explicações. O
enciclopedista R. N. Champlin enumera algumas delas as quais faço referência
sucinta de cada uma:
ü A narrativa é uma fraude: essa é a crítica preferida de
todos os estudiosos racionalistas. Para estes críticos os apóstolos e discípulos
inventaram a ascensão para justificar o sumiço de Jesus depois da sua morte na
cruz e o desaparecimento de seu corpo do tumulo.
ü É uma narrativa mitológica: como os evangelhos escritos
demoraram um tempo relativo para serem redigidos e circularem, deu espaço para
se criar aspectos mitológicos ou lendários sobre a pessoa de Jesus Cristo. Essa
opinião não se sustenta, pois tanto Paulo quanto Pedro tratam desta questão em
suas correspondências e fazem dela um fundamento da fé cristã (1Ts 1.10; 1Pd
3.22). Lucas escreveu seus dois volumes com base em testemunhas oculares,
dentre os quais Pedro e Paulo.
ü A ascensão é simbólica: Os evangelistas não estão falando
de um fato real, mas se referindo a um símbolo da fé dos primeiros cristãos.
Querem ensinar que Jesus após a ressurreição Ele continuou vivendo em outro lugar
distinto da terra. Todavia, em nenhuma parte dos escritos neotestamentários há
qualquer dúvida sobre o fato histórico da ascensão de Jesus.
ü Os discípulos tiveram uma visão mística: Não era um fato
real e concreto mas uma espécie de teofania do Jesus glorioso. Essa visão foi
proporcionada pela ação do Espírito Santo na mente e coração dos discípulos,
para consolá-los e anima-los a darem continuidade à pregação do Evangelho.
Evidentemente que cada uma destas explicações exige muito
mais elaboração, criatividade e “fé” do que aceitar o simples fato de que as
narrativas evangélicas são registros históricos literais. O ap. Paulo fala em
torno de quinhentas testemunhas da ressurreição de Jesus, o que é um número
expressivo. Todas as referências bíblicas tratam a ascensão como um fato
histórico e visível, tendo acontecido em um dia e local determinado. E enquanto
conversa com Maria Madalena após a ressurreição Jesus lhe fala: “Não me toques, porque ainda não subi ao meu
Pai" (João 20.17). É bem provável que a omissão sobre a ascensão por parte
de Mateus e Marcos seja pelo fato deles optarem por concluírem suas narrativas
com cenas na Galileia, distante de Jerusalém; enquanto as narrativas de Marcos
e Lucas se concluem com Jesus e os discípulos em Jerusalém no dia da ascensão.
Todavia, não significa que este fato histórico esteja destituído
de mistério. Após sua ressurreição Jesus tem um corpo diferente, pois aparece
no meio dos discípulos sem ser percebido, tendo as portas e janelas fechadas; os
dois discípulos de Emaús, que o conheciam tão bem, caminharam com Ele um dia
inteiro sem reconhecê-lo e quando compartilhavam a refeição e foi reconhecido
por deles, Ele simplesmente desaparece aos seus olhos. Portanto, o fato de
subir aos céus diante dos olhos admirados e extasiados de seus discípulos não
se constitui em algo impossível ou inimaginável, a não ser para aqueles que
entendem que tudo o que foi registrado anteriormente sobre Jesus são lendas e
fruto da imaginação fértil dos discípulos galileus.
Finalmente, há uma
razão especial pela qual Lucas encerra sua narrativa evangélica e inicia o de
Atos destacando a questão da ascensão de Jesus Cristo, pois toda a mensagem de
Atos (ecos da pregação apostólica) esta centrada no fato de que o Jesus ressurreto
que retornou aos céus para ser glorificado, no tempo demarcado por Deus
(kairós) retornara para buscar sua Igreja. Estas são as palavras proferidas
pelos seres celestes vestidos de branco dizem aos discípulos: "Galileus, por que vocês estão olhando para o
céu? Este mesmo Jesus, que dentre vocês foi elevado aos céus, voltará da
mesma forma como o viram subir". Nestas palavras há dois aspectos fundamentais
da mensagem cristã: o Senhor retornara (segunda vinda - Parousia) e voltara em
forma corpórea e visível, de maneira que será reconhecido por todos os cristãos
em todos os tempos.
Apesar de Lucas ser de origem grega ele utiliza uma
linguagem que expressa não a mitologia grega de ascensão (Cipião que voa para
as estrelas ou César que após a cremação faz sua apoteose), mas a teofania mencionada
diversas vezes na literatura do Primeiro Testamento, para ilustrar a ascensão
de Jesus – ele foi elevado aos céus diante
dos olhos dos discípulos – ficando ocultado
por uma nuvem.
A “nuvem" invoca imediatamente na mente
do leitor familiarizado com o Primeiro Testamento à teofania de Êxodo (33.9-10;
40,38). Em sua narrativa evangélica Lucas havia registrado um momento em que
Jesus revela um pouco de sua glória divina (a transfiguração de Jesus - Lc 9.28-36).
Entronização de Jesus ainda não é a conclusão definitiva do Projeto de Redenção
elaborada na eternidade, que será plenamente concluído com a restauração de
toda a criação, pela qual como ensina Paulo “toda a criação juntamente geme e está com dores de parto até agora”
(Romanos 8.22), aguardando sua restauração definitiva. Tão relevante quanto a
ascensão e entronização de Jesus Cristo é o seu retorno (Parousia),[3] que
se constitui no fundamento de toda escatologia neotestamentária, mas que infelizmente
hoje esta legada ao ostracismo pelo cristianismo/evangelicalismo hedonista e
materialista prevalecente, mas que foi tão amada e desejada pelos cristãos do
primeiro século e pelos cristãos em todos os avivamentos espirituais genuínos que
ocorreram na História da Igreja Cristã. Na mesma proporção em que a igreja
evangélica atual abandonou a expectativa da Parousia, ela perdeu sua vitalidade
e suas qualidades de sal da terra e luz do mundo. Certamente esta é a razão
pela atual decadência espiritual da igreja cristã e de sua assimilação pelo
sistema vigente neste mundo.
Uma a uma destas doutrinas neotestamentárias – ascensão,
entronização e parousia – foram sendo lançadas no limbo do esquecimento cristão
– substituída de forma pobre e medíocre por teologias racionalistas e por
última a pseuda teologia da prosperidade que dá total e plena vazão à toda
sorte de anseios e devaneios materialista-hedonista.
A igreja cristã evangélica atual brasileira tem apenas
uma única alternativa para retornar ao genuíno Evangelho neotestamentário –
resgatar cada um destes pontos cardeais da fé cristã. Caso permaneça nesta
mesma trajetória terá que enfrentar o juízo de Deus sobre ela e como diz Pedro,
o juízo de Deus começara pelos seus líderes. Maranata, oh! Vem, Senhor Jesus!
“Este mesmo Jesus, que dentre vocês foi elevado aos
céus, voltará da mesma forma como o viram subir".
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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Glossário - A e B
Referências
Bibliográficas
ASHCRAFT, Morris. Comentário
Bíblico Broadman, v.12, ed. JUERP, 3ª ed., 1983.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado. São Paulo: Milenium, 1988.
________________________. Enciclopédia
de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo: Hagnos, 8ª ed., 2006.
DOUGLAS
J. D. O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo. Ed. Vida Nova, 2001.
ERDMAN,
Charles R. Hechos de Los Apóstoles. Ed. TELL, 1974.
HENDRIKSEN,
William. Mais Que Vendedores - Interpretação do livro do
Apocalipse. São Paulo. ed. CEP, 1987.
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Edward A. O Apocalipse – Sua Mensagem e Significação. Rio de
Janeiro. Casa Publicadora Batista, 1960.
SMITH,
T. C. Comentário Bíblico Broadman, v.10. Rio de Janeiro:
JUERP, 1984.
SUMMERS
Ray. A Mensagem do Apocalipse. Rio de Janeiro. Ed. JUERP, 1980.
WILLIAMS,
David J. Novo Comentário Bíblico Contemporâneo – Atos. São
Paulo: Vida, 1996.
[1] Na narrativa produzida por Marcos
também há referência sobre a ascensão de Jesus, mas como existe muita discussão
sobre onde de fato termina sua conclusão é preferível utilizarmos a referência
de Lucas-Atos. O evangelista Mateus não faz nenhuma referência deste
acontecimento, ainda que em algumas passagens podemos observar inferências que
faz transparecer que Mateus também tinha conhecimento deste acontecimento (Mt
22.44; 24.30; 25.14, 31 e 26.64). O evangelista João também optou por se calar
sobre a ascensão do Senhor Jesus.
[2]
Uma antiga tradição cristã entendia que a ressurreição e a ascensão ocorreram
no mesmo dia, mas as demais narrativas se contrapõem a esta conclusão.
[3]
O vocábulo grego parousia (de páreimi: estar presente, estar aí, chegar), o que
sempre se destaca para é o seu caráter triunfal e glorioso. Trata-se de uma
manifestação em poder e glória que tem um acento explicitamente jubiloso e
festivo.
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