terça-feira, 2 de outubro de 2018

A Ascensão de Cristo (Atos 1.6-11)



            Com exceção das igrejas que seguem o Calendário Cristão em suas liturgias, a grande maioria das denominações evangélicas e praticamente todas aquelas denominadas neopentecostais, acabam por se esquecerem deste marco fundamental do Projeto Redentor de Deus – a ascensão de Jesus Cristo.[1] Restringimo-nos à Pascoa e ao Natal e nos esquecemos da Ascensão e do Pentecostes. Desta forma acabamos por empobrecer o Cristianismo de dois momentos únicos de sua História iniciante.
            O evangelista Lucas escreve sua obra em dois volumes Lucas-Atos: na primeira parte ele se concentra na Pessoa de Jesus até sua morte e ressurreição e no segundo volume se concentra na expansão da mensagem cristã efetuada pela ação do Espírito Santo através dos apóstolos e discípulos.
            Mas ele vincula os dois volumes, pois da mesma forma que conclui o primeiro volume (Evangelho) é a forma com que abre o segundo volume (Atos):
Evangelho Lucas (24.50,51)
Atos (1.6-11)
Tendo-os levado até as proximidades de Betânia, Jesus ergueu as mãos e os abençoou.
Estando ainda a abençoá-los, ele os deixou e foi elevado ao céu.
Então eles o adoraram e voltaram para Jerusalém com grande alegria.
E permaneciam constantemente no templo, louvando a Deus.

Então os que estavam reunidos lhe perguntaram: "Senhor, é neste tempo que vais restaurar o reino a Israel?"
Ele lhes respondeu: Não lhes compete saber os tempos ou as datas que o Pai estabeleceu pela sua própria autoridade.
Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra.
Tendo dito isso, foi elevado às alturas enquanto eles olhavam, e uma nuvem o encobriu da vista deles.
E eles ficaram com os olhos fixos no céu enquanto ele subia. De repente surgiram diante deles dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: "Galileus, por que vocês estão olhando para o céu? Este mesmo Jesus, que dentre vocês foi elevado aos céus, voltará da mesma forma como o viram subir".

            Na conclusão de sua narrativa evangélica Lucas é extremamente sucinto na referência da ascensão, mas na abertura de Atos ele faz uma pequena, mas interessante expansão da referência sobre esse momento em que Jesus se despede de seus discípulos e ascende aos céus para reassumir seu trono glorioso e celestial.
            Quando examinamos apenas as referências de Lucas (e Marcos) podemos concluir equivocadamente que não houve um período de intervalo longo entre a ressurreição e a ascensão de Jesus.[2] Todavia, quando examinamos o conjunto narrativo somos informados por João que após a ressurreição Jesus esteve em ocasiões diferentes com seus discípulos: a primeira é a Maria Madalena no próprio túmulo (Marcos 16.9 e João 20.11); depois para as mulheres no retorno do túmulo vazio (Mateus 28.9); depois aos dois discípulos de Emaús (Lucas 24.13 e Marcos 16.12); depois, aos discípulos reunidos no cenáculo sem Tomé (Lucas 24.36, João 20.19 e Marcos 16.14); depois aos discípulos, com a presença de Tomé (João 20.24); depois, durante a pesca milagrosa relatada por João (21); depois, em uma montanha na Galileia (Mateus 28.16 e Marcos 16.15); então em Jerusalém (Lucas 24.44); e finalmente durante a Ascensão (Marcos 16.19 e Lucas 24.50). Mas agora, era o momento de retornar ao Pai.
            As poucas referências históricas à ascensão tem produzido uma série de críticas e elaboras explicações. O enciclopedista R. N. Champlin enumera algumas delas as quais faço referência sucinta de cada uma:
ü  A narrativa é uma fraude: essa é a crítica preferida de todos os estudiosos racionalistas. Para estes críticos os apóstolos e discípulos inventaram a ascensão para justificar o sumiço de Jesus depois da sua morte na cruz e o desaparecimento de seu corpo do tumulo.
ü  É uma narrativa mitológica: como os evangelhos escritos demoraram um tempo relativo para serem redigidos e circularem, deu espaço para se criar aspectos mitológicos ou lendários sobre a pessoa de Jesus Cristo. Essa opinião não se sustenta, pois tanto Paulo quanto Pedro tratam desta questão em suas correspondências e fazem dela um fundamento da fé cristã (1Ts 1.10; 1Pd 3.22). Lucas escreveu seus dois volumes com base em testemunhas oculares, dentre os quais Pedro e Paulo.
ü  A ascensão é simbólica: Os evangelistas não estão falando de um fato real, mas se referindo a um símbolo da fé dos primeiros cristãos. Querem ensinar que Jesus após a ressurreição Ele continuou vivendo em outro lugar distinto da terra. Todavia, em nenhuma parte dos escritos neotestamentários há qualquer dúvida sobre o fato histórico da ascensão de Jesus.
ü  Os discípulos tiveram uma visão mística: Não era um fato real e concreto mas uma espécie de teofania do Jesus glorioso. Essa visão foi proporcionada pela ação do Espírito Santo na mente e coração dos discípulos, para consolá-los e anima-los a darem continuidade à pregação do Evangelho.
Evidentemente que cada uma destas explicações exige muito mais elaboração, criatividade e “fé” do que aceitar o simples fato de que as narrativas evangélicas são registros históricos literais. O ap. Paulo fala em torno de quinhentas testemunhas da ressurreição de Jesus, o que é um número expressivo. Todas as referências bíblicas tratam a ascensão como um fato histórico e visível, tendo acontecido em um dia e local determinado. E enquanto conversa com Maria Madalena após a ressurreição Jesus lhe fala: “Não me toques, porque ainda não subi ao meu Pai" (João 20.17). É bem provável que a omissão sobre a ascensão por parte de Mateus e Marcos seja pelo fato deles optarem por concluírem suas narrativas com cenas na Galileia, distante de Jerusalém; enquanto as narrativas de Marcos e Lucas se concluem com Jesus e os discípulos em Jerusalém no dia da ascensão.
Todavia, não significa que este fato histórico esteja destituído de mistério. Após sua ressurreição Jesus tem um corpo diferente, pois aparece no meio dos discípulos sem ser percebido, tendo as portas e janelas fechadas; os dois discípulos de Emaús, que o conheciam tão bem, caminharam com Ele um dia inteiro sem reconhecê-lo e quando compartilhavam a refeição e foi reconhecido por deles, Ele simplesmente desaparece aos seus olhos. Portanto, o fato de subir aos céus diante dos olhos admirados e extasiados de seus discípulos não se constitui em algo impossível ou inimaginável, a não ser para aqueles que entendem que tudo o que foi registrado anteriormente sobre Jesus são lendas e fruto da imaginação fértil dos discípulos galileus.
 Finalmente, há uma razão especial pela qual Lucas encerra sua narrativa evangélica e inicia o de Atos destacando a questão da ascensão de Jesus Cristo, pois toda a mensagem de Atos (ecos da pregação apostólica) esta centrada no fato de que o Jesus ressurreto que retornou aos céus para ser glorificado, no tempo demarcado por Deus (kairós) retornara para buscar sua Igreja. Estas são as palavras proferidas pelos seres celestes vestidos de branco dizem aos discípulos: "Galileus, por que vocês estão olhando para o céu? Este mesmo Jesus, que dentre vocês foi elevado aos céus, voltará da mesma forma como o viram subir".  Nestas palavras há dois aspectos fundamentais da mensagem cristã: o Senhor retornara (segunda vinda - Parousia) e voltara em forma corpórea e visível, de maneira que será reconhecido por todos os cristãos em todos os tempos.
Apesar de Lucas ser de origem grega ele utiliza uma linguagem que expressa não a mitologia grega de ascensão (Cipião que voa para as estrelas ou César que após a cremação faz sua apoteose), mas a teofania mencionada diversas vezes na literatura do Primeiro Testamento, para ilustrar a ascensão de Jesus – ele foi elevado aos céus diante dos olhos dos discípulosficando ocultado por uma nuvem.
 A “nuvem" invoca imediatamente na mente do leitor familiarizado com o Primeiro Testamento à teofania de Êxodo (33.9-10; 40,38). Em sua narrativa evangélica Lucas havia registrado um momento em que Jesus revela um pouco de sua glória divina (a transfiguração de Jesus - Lc 9.28-36). Entronização de Jesus ainda não é a conclusão definitiva do Projeto de Redenção elaborada na eternidade, que será plenamente concluído com a restauração de toda a criação, pela qual como ensina Paulo “toda a criação juntamente geme e está com dores de parto até agora” (Romanos 8.22), aguardando sua restauração definitiva. Tão relevante quanto a ascensão e entronização de Jesus Cristo é o seu retorno (Parousia),[3] que se constitui no fundamento de toda escatologia neotestamentária, mas que infelizmente hoje esta legada ao ostracismo pelo cristianismo/evangelicalismo hedonista e materialista prevalecente, mas que foi tão amada e desejada pelos cristãos do primeiro século e pelos cristãos em todos os avivamentos espirituais genuínos que ocorreram na História da Igreja Cristã. Na mesma proporção em que a igreja evangélica atual abandonou a expectativa da Parousia, ela perdeu sua vitalidade e suas qualidades de sal da terra e luz do mundo. Certamente esta é a razão pela atual decadência espiritual da igreja cristã e de sua assimilação pelo sistema vigente neste mundo.
Uma a uma destas doutrinas neotestamentárias – ascensão, entronização e parousia – foram sendo lançadas no limbo do esquecimento cristão – substituída de forma pobre e medíocre por teologias racionalistas e por última a pseuda teologia da prosperidade que dá total e plena vazão à toda sorte de anseios e devaneios materialista-hedonista.
A igreja cristã evangélica atual brasileira tem apenas uma única alternativa para retornar ao genuíno Evangelho neotestamentário – resgatar cada um destes pontos cardeais da fé cristã. Caso permaneça nesta mesma trajetória terá que enfrentar o juízo de Deus sobre ela e como diz Pedro, o juízo de Deus começara pelos seus líderes. Maranata, oh! Vem, Senhor Jesus!
“Este mesmo Jesus, que dentre vocês foi elevado aos céus, voltará da mesma forma como o viram subir".


Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


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Referências Bibliográficas
ASHCRAFT, Morris. Comentário Bíblico Broadman, v.12, ed. JUERP, 3ª ed., 1983.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado. São Paulo: Milenium, 1988.
________________________. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo: Hagnos, 8ª ed., 2006.
DOUGLAS J. D. O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo. Ed. Vida Nova, 2001.
ERDMAN, Charles R. Hechos de Los Apóstoles. Ed. TELL, 1974.
HENDRIKSEN, William. Mais Que Vendedores - Interpretação do livro do Apocalipse. São Paulo.  ed. CEP, 1987.
McDOWELL, Edward A. O Apocalipse – Sua Mensagem e Significação. Rio de Janeiro. Casa Publicadora Batista, 1960.
SMITH, T. C. Comentário Bíblico Broadman, v.10. Rio de Janeiro: JUERP, 1984.
SUMMERS Ray. A Mensagem do Apocalipse. Rio de Janeiro. Ed. JUERP, 1980.
WILLIAMS, David J. Novo Comentário Bíblico Contemporâneo – Atos. São Paulo: Vida, 1996.



[1] Na narrativa produzida por Marcos também há referência sobre a ascensão de Jesus, mas como existe muita discussão sobre onde de fato termina sua conclusão é preferível utilizarmos a referência de Lucas-Atos. O evangelista Mateus não faz nenhuma referência deste acontecimento, ainda que em algumas passagens podemos observar inferências que faz transparecer que Mateus também tinha conhecimento deste acontecimento (Mt 22.44; 24.30; 25.14, 31 e 26.64). O evangelista João também optou por se calar sobre a ascensão do Senhor Jesus.
[2] Uma antiga tradição cristã entendia que a ressurreição e a ascensão ocorreram no mesmo dia, mas as demais narrativas se contrapõem a esta conclusão.
[3] O vocábulo grego parousia (de páreimi: estar presente, estar aí, chegar), o que sempre se destaca para é o seu caráter triunfal e glorioso. Trata-se de uma manifestação em poder e glória que tem um acento explicitamente jubiloso e festivo.

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