sábado, 20 de outubro de 2018

Natividade: Maria e Isabel - Um Encontro Harmonioso entre o Antigo e o Novo Testamento



            O evangelista Lucas tem sido chamado carinhosamente de o “Evangelho do Feminino”, em razão de que sua narrativa e permeada no começo, meio e fim pela presença efetiva e ativa das mulheres. Ele inicia sua narrativa evangélica com duas fortes figuras femininas (Isabel e Maria) e conclui com o testemunho esfuziante das mulheres – as primeiras a proclamarem que Jesus Cristo ressuscitou dentre os mortos!
            Ainda que Mateus inicie sua narrativa do advento de forma ousada, incluindo quatro mulheres na genealogia de Jesus – fato inconcebível naquele tempo na cultura judaica, ele centra sua narrativa apenas na figura de Maria, mas paulatinamente vai deslocando a atenção para a figura de José que recebe as visões angelicais e conduz os rumos da história, sendo Maria conduzida por ele.
            Portanto, somente na narrativa lucana encontramos as figuras proativas de duas mulheres – Isabel e Maria – nas quais e pelas quais as ações sobrenaturais do advento[1] se concretizam em uma extraordinária harmonia no cumprimento de toda revelação veterotestamentária e neotestamentária – entre o que haveria de acontecer e o que está acontecendo.
            Esse incomparável encontro e confluência de toda revelação bíblica é registra por Lucas de uma forma simples e familiar entre duas primas Isabel, a mais velha e Maria, a mais jovem. Nesse encontro singelo destas duas mulheres que haverão de compartilhar suas experiências pessoais com Deus, temos o representativo de todos os crentes em todas as épocas. O encontro foi registrado por Lucas em poucas linhas (1.39-56), como é costume de todos os registros bíblicos, porém de beleza e estilo literário do mais alto nível. É impossível não ser cativado pelos diálogos delas e suas expressões de gratidão e louvor a Deus por tudo quanto Ele tem realizado e realizara na vida delas e das crianças que estão sendo geradas em seus ventres.
            Mas além da primeira leitura dos textos de Lucas, nos quais somos continuamente lembrados – principalmente na proximidade dos festejos natalinos – de que Jesus nasceu, é possível fazermos uma leitura mais profunda e descobrirmos alguns presentes (não dos magos, mas de Lucas) que o evangelista de forma singular escondeu, mas como nas brincadeiras com as crianças, para serem sempre encontradas. Uma destes presentes é a confluência de toda mensagem veterotestamentária, já devidamente registrada e canonizada, e a nova mensagem neotestamentária que esta sendo devidamente registrada e posteriormente será canonizada e vinculada formando então uma só revelação (como no casamento – onde dois corpos se moldam e formam apenas um só corpo).
            De acordo com Lucas para se compreender realmente o significado do nascimento de Jesus (advento, natal) é preciso antes entender as implicações deste evento único e incomparável na história humana. Nestes dias em que as festividades natalinas se amalgamaram com o colorido esfuziante das imensas árvores de natal; onde o foco central deixou de ser Jesus e foi deslocado para o espírito comercial, materialista e hedonista das pessoas (nossos); encontrar os presentes deixados por Lucas em sua narrativa dialogal destas duas mulheres torna-se indispensável para resgatarmos o genuíno espírito e mensagem do Advento – do Natal – do nascimento de Jesus Cristo!
            Há varias intensões de Lucas nestas narrativas iniciais que perfazem os dois primeiros capítulos. Ao fazer uma narrativa paralela entre a gestação e nascimento de João (o Batista) e Jesus o evangelista deseja preparar o terreno para as narrativas posteriores do ministério de Jesus. Ambos estão entrelaçados com as profecias registradas no Primeiro Testamento, ainda que a posição de João seja a de proclamar a chegada e o de Jesus o de assumir as funções do Messias, o que esclarecia alguma dúvida do papel de cada um deles no desenvolvimento da mensagem cristã.
            Mas é preciso ver além de uma simples hierarquia ou submissão de João em relação a Jesus. A questão entre João e Jesus não é de hierarquia, quem é o mais importante, como fica evidenciado na cena do batismo às margens do rio Jordão, onde Jesus se submete ao batismo efetuado por João. No desenvolvimento de sua narrativa Lucas deseja demonstrar que há uma perfeita harmonia entre as narrativas das Escrituras e os acontecimentos que serão narrados por ele à frente. Há uma relação vital entre a mensagem do Evangelho cristão e a mensagem das Escrituras hebraicas, de maneira que não há um antagonismo ou embate entre a Lei pronunciada através de Moisés e o Evangelho proclamado por Jesus; entre o antigo Israel e o novo Israel – mas uma harmonização perfeita, como ele vai deixar claro no encontro dialogal de Isabel e Maria, que antecede o nascimento das duas crianças.
Isabel e Maria Figuras Paralelas
            Muito mais do que uma simples reunião familiar de duas primas grávidas Lucas quer apresentar o perfeito sincronismo entre a mensagem dos dois Testamentos. Todos os detalhes e informações secundários da narrativa servem para iluminar o grande evento que está acontecendo – a inserção de Deus na nossa humanidade, cumprindo todo o programa veterotestamentário e inaugurando o novo cronograma da redenção, que culminara com a ascensão, glorificação e retorno glorioso para Reinar eternamente com seu Povo – sua Igreja. Desde seu prólogo (como também em Atos) Lucas deixa claro que o conteúdo central de sua narrativa é a vida e glória de Jesus Cristo, desde seu nascimento sobrenatural até sua ascensão ao céu (Atos 1.2).
            Nos diálogos das duas primas Lucas vai tecendo sua narrativa sincrônica de harmonização entre o Antigo que se cumpre e o Novo que se estabelece. Apenas para efeito de visualização a narrativa em destaque (1.39-56) pode ser dividida em quatro partes: 1) Viagem e saudação de Maria (v. 39-56); 2) A recepção de Maria por Isabel (v. 41-45); 3) O Cântico de Maria (v. 46-55) e permanência e retorno de Maria (v. 56).
            No tecido narrativo Isabel, a mais velha, representa o velho Israel, enquanto Maria a mais jovem representa o novo Israel. O novo não se opõe ao velho, mas ao contrário, vem-lhe ao encontro e não se trata de um encontro bélico, mas harmonioso e regado a cânticos de louvor e gratidão – pois se manifestou a grande Salvação – para todas as nações, povos e etnias.
            Maria assume a personalidade de convênio ou corporação representativo de todo o crente da nova Aliança. Assim como Maria sai da Galileia (dos gentios) em direção a Judá, o cristão que estava fora da antiga aliança vem para ser inserido na nova aliança.  O termo utilizado por Lucas para descrever o inicio da viagem de Maria “pôr-se a caminho” “partiu” trás a ideia de êxodo – saindo do Egito em direção a Terra de Canaã, da escravidão para a liberdade, da morte para a vida.
            Isabel além de sua herança étnica judaica, ela é descendente do sacerdote Arão e esposa de um sacerdote, Zacarias (1.5); em sua personalidade e identidade corporativa ela representa na narrativa lucana a totalidade do povo israelita – a nação Judaica como um todo. Ela e o marido são judeus piedosos que observam os preceitos da Lei do Senhor (1.6). Mas em sua velhice e esterilidade ela personaliza a velha e estéril nação judaica; os sentimentos antecedentes de Isabel de frustração e insatisfação com sua condição estéril, “opróbrio diante dos homens” (1.25b), expressa o sentimento dos judeus nos dias que antecedem a manifestação das boas novas do Evangelho. Mas agora Deus uma vez mais vem ao encontro de seu povo e lhes renova a esperança e a alegria – assim como Deus opera nela e para ela, tornando seu útero mortificado e centro de vida novamente, assim Deus haverá de operar uma vez mais em e para os judeus, onde o judaísmo estéril e mortificado será transformado em renovo e vida por meio de Jesus.
            O marco desta transformação é a chegada de Maria que representa e trás consigo uma nova ordem fecundada em seu jovem e imaculado ventre. O contraste, e Lucas ama fazê-lo, é evidente mesmo na leitura simples – Maria é virgem e jovem e Isabel está envelhecida; Maria terá outros filhos, enquanto Isabel tem apenas um único filho.
            Assim que Maria faz a saudação a Isabel a criança em seu ventre salta – como que saudando a criança que acaba de chegar – a velha aliança saúda a nova aliança, pois sabe que ela já cumpriu sua função. O próprio Jesus posteriormente deixará claro que não veio abolir a Lei, mas cumpri-la e que toda a antiga ordem fazia referência, apontavam, em sua direção – Ele estava gestado na antiga aliança e agora nasce para manifestar a nova e definitiva ordem; na antiga aliança tudo era passageiro, mas na nova aliança tudo é eterno; a antiga era sombra e a nova é a realidade.
            O reconhecimento e acolhimento de Isabel em relação a Maria é a resposta positiva de todos os judeus piedosos que como o sacerdote ancião Simeão e a velha profetiza Ana haverão de se rejubilarem e morrerem em paz, pois viram a salvação do Senhor para seu povo. Maria saúda Isabel, assim como o Evangelho saúda a Lei; Jesus se submete à Lei Mosaica calorosa e amistosamente – pois não existe e nunca existiu hostilidades entre eles – são consanguíneos e se alegram mutuamente com aquilo que Deus fez e continua a fazer em favor de seu povo e de todos os crentes em todas as épocas e lugares. E Lucas através do encontro destas duas mulheres pinta um dos mais extraordinários quadros de toda sua galeria natalina – a unidade perfeita e harmoniosa entre as duas eras – entre as duas dispensações – entre as duas Alianças.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
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Referências Bibliográficas
ASH, Anthony Lee. O Evangelho Segundo Lucas. Tradução Neyd V. Siqueira. São Paulo: Editora Vida Cristã, 1980.
BETTENCOURT, Estevão. Para Entender os Evangelhos.  Rio de Janeiro: Agir, 1960.
CARSON D. A., DOUGLAS, J. Moo & MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.
CASALEGNO, Alberto. Lucas – a caminho com Jesus missionário. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado – versículo por versículo, v. II. São Paulo: Millenium, 1987.
________________________. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, v.3. São Paulo: Candeia, 1995.
LEAL, João. Os Evangelhos e a Crítica Moderna. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1945.
MORRIS, Leon L. Lucas – introdução e comentário. São Paulo: Edições Vida Nova, 2008. [Série Cultura Cristã].
TENNEY, Merrill C. O Novo Testamento - sua origem e análise, 2a ed. São Paulo: Vida Nova, 1972.


[1] O Advento é o primeiro tempo do Ano litúrgico, o qual antecede o Natal. Para os cristãos, é um tempo de preparação e alegria, de expectativa, onde os fiéis, esperando o Nascimento de Jesus Cristo, vivem o arrependimento e promovem a fraternidade e a Paz.

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