O evangelista Lucas tem sido chamado carinhosamente de o “Evangelho do Feminino”, em razão de que sua
narrativa e permeada no começo, meio e fim pela presença efetiva e ativa das
mulheres. Ele inicia sua narrativa evangélica com duas fortes figuras femininas
(Isabel e Maria) e conclui com o testemunho esfuziante das mulheres – as primeiras
a proclamarem que Jesus Cristo ressuscitou dentre os mortos!
Ainda que Mateus inicie sua narrativa do advento de forma
ousada, incluindo quatro mulheres na genealogia de Jesus – fato inconcebível naquele
tempo na cultura judaica, ele centra sua narrativa apenas na figura de Maria,
mas paulatinamente vai deslocando a atenção para a figura de José que recebe as
visões angelicais e conduz os rumos da história, sendo Maria conduzida por ele.
Portanto, somente na narrativa lucana encontramos as
figuras proativas de duas mulheres – Isabel e Maria – nas quais e pelas quais
as ações sobrenaturais do advento[1] se concretizam em uma
extraordinária harmonia no cumprimento de toda revelação veterotestamentária e
neotestamentária – entre o que haveria de acontecer e o que está acontecendo.
Esse incomparável encontro e confluência de toda
revelação bíblica é registra por Lucas de uma forma simples e familiar entre
duas primas Isabel, a mais velha e Maria, a mais jovem. Nesse encontro singelo
destas duas mulheres que haverão de compartilhar suas experiências pessoais com
Deus, temos o representativo de todos os crentes em todas as épocas. O encontro
foi registrado por Lucas em poucas linhas (1.39-56), como é costume de todos os
registros bíblicos, porém de beleza e estilo literário do mais alto nível. É
impossível não ser cativado pelos diálogos delas e suas expressões de gratidão
e louvor a Deus por tudo quanto Ele tem realizado e realizara na vida delas e
das crianças que estão sendo geradas em seus ventres.
Mas além da primeira leitura dos textos de Lucas, nos
quais somos continuamente lembrados – principalmente na proximidade dos
festejos natalinos – de que Jesus nasceu, é possível fazermos uma leitura mais
profunda e descobrirmos alguns presentes (não dos magos, mas de Lucas) que o
evangelista de forma singular escondeu, mas como nas brincadeiras com as
crianças, para serem sempre encontradas. Uma destes presentes é a confluência
de toda mensagem veterotestamentária, já devidamente registrada e canonizada, e
a nova mensagem neotestamentária que esta sendo devidamente registrada e
posteriormente será canonizada e vinculada formando então uma só revelação
(como no casamento – onde dois corpos se moldam e formam apenas um só corpo).
De acordo com Lucas para se compreender realmente o
significado do nascimento de Jesus (advento, natal) é preciso antes entender as
implicações deste evento único e incomparável na história humana. Nestes dias
em que as festividades natalinas se amalgamaram com o colorido esfuziante das
imensas árvores de natal; onde o foco central deixou de ser Jesus e foi
deslocado para o espírito comercial, materialista e hedonista das pessoas
(nossos); encontrar os presentes deixados por Lucas em sua narrativa dialogal
destas duas mulheres torna-se indispensável para resgatarmos o genuíno espírito
e mensagem do Advento – do Natal – do nascimento de Jesus Cristo!
Há varias intensões de Lucas nestas narrativas iniciais
que perfazem os dois primeiros capítulos. Ao fazer uma narrativa paralela entre
a gestação e nascimento de João (o Batista) e Jesus o evangelista deseja
preparar o terreno para as narrativas posteriores do ministério de Jesus. Ambos
estão entrelaçados com as profecias registradas no Primeiro Testamento, ainda
que a posição de João seja a de proclamar a chegada e o de Jesus o de assumir as
funções do Messias, o que esclarecia alguma dúvida do papel de cada um deles no
desenvolvimento da mensagem cristã.
Mas é preciso ver além de uma simples hierarquia ou
submissão de João em relação a Jesus. A questão entre João e Jesus não é de
hierarquia, quem é o mais importante, como fica evidenciado na cena do batismo
às margens do rio Jordão, onde Jesus se submete ao batismo efetuado por João. No
desenvolvimento de sua narrativa Lucas deseja demonstrar que há uma perfeita
harmonia entre as narrativas das Escrituras e os acontecimentos que serão
narrados por ele à frente. Há uma relação vital entre a mensagem do Evangelho
cristão e a mensagem das Escrituras hebraicas, de maneira que não há um
antagonismo ou embate entre a Lei pronunciada através de Moisés e o Evangelho
proclamado por Jesus; entre o antigo Israel e o novo Israel – mas uma
harmonização perfeita, como ele vai deixar claro no encontro dialogal de Isabel
e Maria, que antecede o nascimento das duas crianças.
Isabel e Maria Figuras
Paralelas
Muito mais do que uma simples reunião familiar de duas
primas grávidas Lucas quer apresentar o perfeito sincronismo entre a mensagem
dos dois Testamentos. Todos os detalhes e informações secundários da narrativa
servem para iluminar o grande evento que está acontecendo – a inserção de Deus na
nossa humanidade, cumprindo todo o programa veterotestamentário e inaugurando o
novo cronograma da redenção, que culminara com a ascensão, glorificação e
retorno glorioso para Reinar eternamente com seu Povo – sua Igreja. Desde seu
prólogo (como também em Atos) Lucas deixa claro que o conteúdo central de sua
narrativa é a vida e glória de Jesus Cristo, desde seu nascimento sobrenatural
até sua ascensão ao céu (Atos 1.2).
Nos diálogos das duas primas Lucas vai tecendo sua
narrativa sincrônica de harmonização entre o Antigo que se cumpre e o Novo que
se estabelece. Apenas para efeito de visualização a narrativa em destaque
(1.39-56) pode ser dividida em quatro partes: 1) Viagem e saudação de Maria (v. 39-56); 2) A recepção de Maria por Isabel (v. 41-45); 3) O Cântico de Maria (v. 46-55) e
permanência e retorno de Maria (v. 56).
No tecido narrativo Isabel, a mais velha, representa o
velho Israel, enquanto Maria a mais jovem representa o novo Israel. O novo não
se opõe ao velho, mas ao contrário, vem-lhe ao encontro e não se trata de um
encontro bélico, mas harmonioso e regado a cânticos de louvor e gratidão – pois
se manifestou a grande Salvação – para todas as nações, povos e etnias.
Maria assume a personalidade de convênio ou corporação
representativo de todo o crente da nova Aliança. Assim como Maria sai da
Galileia (dos gentios) em direção a Judá, o cristão que estava fora da antiga
aliança vem para ser inserido na nova aliança.
O termo utilizado por Lucas para descrever o inicio da viagem de Maria “pôr-se a caminho” “partiu” trás a ideia de êxodo
– saindo do Egito em direção a Terra de Canaã, da escravidão para a liberdade,
da morte para a vida.
Isabel além de sua herança étnica judaica, ela é
descendente do sacerdote Arão e esposa de um sacerdote, Zacarias (1.5); em sua
personalidade e identidade corporativa ela representa na narrativa lucana a
totalidade do povo israelita – a nação Judaica como um todo. Ela e o marido são
judeus piedosos que observam os preceitos da Lei do Senhor (1.6). Mas em sua
velhice e esterilidade ela personaliza a velha e estéril nação judaica; os
sentimentos antecedentes de Isabel de frustração e insatisfação com sua
condição estéril, “opróbrio diante dos
homens” (1.25b), expressa o sentimento dos judeus nos dias que antecedem a
manifestação das boas novas do Evangelho. Mas agora Deus uma vez mais vem ao
encontro de seu povo e lhes renova a esperança e a alegria – assim como Deus
opera nela e para ela, tornando seu útero mortificado e centro de vida
novamente, assim Deus haverá de operar uma vez mais em e para os judeus, onde o
judaísmo estéril e mortificado será transformado em renovo e vida por meio de
Jesus.
O marco desta transformação é a chegada de Maria que
representa e trás consigo uma nova ordem fecundada em seu jovem e imaculado ventre.
O contraste, e Lucas ama fazê-lo, é evidente mesmo na leitura simples – Maria é
virgem e jovem e Isabel está envelhecida; Maria terá outros filhos, enquanto
Isabel tem apenas um único filho.
Assim que Maria faz a saudação a Isabel a criança em seu
ventre salta – como que saudando a criança que acaba de chegar – a velha
aliança saúda a nova aliança, pois sabe que ela já cumpriu sua função. O
próprio Jesus posteriormente deixará claro que não veio abolir a Lei, mas
cumpri-la e que toda a antiga ordem fazia referência, apontavam, em sua direção
– Ele estava gestado na antiga aliança e agora nasce para manifestar a nova e
definitiva ordem; na antiga aliança tudo era passageiro, mas na nova aliança
tudo é eterno; a antiga era sombra e a nova é a realidade.
O reconhecimento e acolhimento de Isabel em relação a
Maria é a resposta positiva de todos os judeus piedosos que como o sacerdote
ancião Simeão e a velha profetiza Ana haverão de se rejubilarem e morrerem em
paz, pois viram a salvação do Senhor para seu povo. Maria saúda Isabel, assim
como o Evangelho saúda a Lei; Jesus se submete à Lei Mosaica calorosa e
amistosamente – pois não existe e nunca existiu hostilidades entre eles – são consanguíneos
e se alegram mutuamente com aquilo que Deus fez e continua a fazer em favor de
seu povo e de todos os crentes em todas as épocas e lugares. E Lucas através do
encontro destas duas mulheres pinta um dos mais extraordinários quadros de toda
sua galeria natalina – a unidade perfeita e harmoniosa entre as duas eras –
entre as duas dispensações – entre as duas Alianças.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro
Blog
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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Referências Bibliográficas
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Cultura Cristã].
TENNEY, Merrill C. O
Novo Testamento - sua origem e análise, 2a ed. São Paulo: Vida Nova, 1972.
[1] O
Advento é o primeiro tempo do Ano litúrgico, o qual antecede o Natal. Para os
cristãos, é um tempo de preparação e alegria, de expectativa, onde os fiéis,
esperando o Nascimento de Jesus Cristo, vivem o arrependimento e promovem a
fraternidade e a Paz.
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