segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Evangelho Segundo Lucas: Características Peculiares


            Todos os evangelistas compõe sua narrativa dentro de suas perspectivas e livremente enfatizam aspectos peculiares objetivando comunicar uma mensagem especifica para seus leitores primários. Abaixo começamos a listar algumas características peculiares da narrativa lucana:
Evangelho do Espírito Santo: Desde as primeiras linhas Lucas enfatiza a ação continua do Espírito Santo na vida e no ministério de Jesus Cristo. O Precursor (João Batista) será cheio do Espírito (1.15); Maria é fecundada pelo Espírito (1.35); Isabel, Zacarias e Simeão são cheios do Espírito (1.43; 1.67; 2.25-28); no batismo o Espírito desce sobre Jesus (3.22); Jesus inicia seu ministério público cheio do Espírito (4.1); Jesus cumpre a profecia de Isaías relacionadas ao Espírito Santo (4.18); o Espírito capacita Jesus a suportar a tentação e vencer o mal (4.1-2, 14); Jesus se alegra no Espírito no retorno dos setenta (10.21); Jesus ensina que os discípulos receberiam o Espírito (11.13; 24.49). Esta presença do Espírito na narrativa lucana leva alguns a denominá-lo: “O Evangelho do Espírito Santo”.
Ênfase no Templo: O templo é frequentemente mencionado, não apenas na conexão dos relatos da Paixão, mas também nas narrativas exclusivas da Natividade (1.8, 21-22; 2.27, 37), incluindo o material exclusivo da visita na puberdade (2.41-51). Após a ascensão de Jesus os discípulos frequentam o Templo (24.53), como que preparando o leitor para a importância central do Templo na vida da igreja primitiva (Atos 2.46; 3.1).
Ministério dos Anjos: As frequentes referências aos anjos (mais de 20 vezes) servem para acentuar a consciência da divindade do evento do Cristo (1.11,26; 2.9, 13).
Ênfase na Oração: Mais do que em Mt e Mc a oração tem papel proeminente no ensino e no exemplo de Jesus. Na seção 11.1-13 tendo Jesus orado (11.1), ele dá aos discípulos um modelo de oração “Pai nosso” (11.2-4) e acrescenta  duas parábolas (do amigo insistente e a do pai bondoso) que indica ao que ora perseverança e confiança (11.5-13). Outras duas parábolas completam esta quadro destacando a perseverança e a humildade (a viúva importuna 18.1-8 e a do fariseu e  do publicano 18.9-14). Em relação à sua Segunda Vinda Jesus exorta seus discípulos a orar (21.36). Além das referências comuns aos Sinóticos, Lucas cita ao menos mais nove vezes em que Jesus orou: por ocasião de seu batismo (3.21); após a cura do leproso Jesus orou no deserto (5.16); antes de escolher os Apóstolos (6.12); antes da confissão de Pedro (9.18); por ocasião da Transfiguração (9.18s); antes de ensinar a oração dominical (11.1s); antes da Paixão (22.32); crucificado, orou pelos inimigos (23.34) e em oração pronuncia suas últimas palavras (23.46). Se isto não é suficiente para nos motivar a orar, então nada mais o será.
O Evangelho do Louvor e da Alegria: Somente Lucas registra uma das mais extraordinárias séries de Cânticos inspirados do NT: o de Maria (Magnificat) 1.46-55; o de Zacarias (Benedictus) 1.68-79; o dos anjos (Glória in encelsis Deo) 2.14; o de Simeão (Nunc dimittis) 2.29-32. Também Lucas utiliza uma expressão peculiar (MT e Mc não utilizam) “louvar ‘bendizer’ a Deus” ou “dar louvor (a Deus)” (cf. 1.64; 2.13,20,28; 18.43 [Mc 10.52]; 19.37 [Mc 11.7-10]; 24.53). A alegria é expressa nestes cânticos e também o próprio Jesus exulta de alegria (10.21) e exorta seus discípulos a se alegrar também (10.20). Lucas observa que o povo se alegrava quando Jesus realizava seus sinais e maravilhas (13.17; 19.37). Ao concluir seu escrito mais uma vez Lucas declara que os discípulos “voltaram cheios de alegria para Jerusalém, e estavam continuamente no Templo louvando a Deus” (24.52s).
O Evangelho dos Pobres e Abandonados: Em aberto contraste com a luxúria e riqueza ansiada pela sociedade em todos os tempos, o Evangelho segundo Lucas destaca a atenção especial de Jesus para com os pobres e rejeitados. Muitas passagens em Lucas contrastam a riqueza e a pobreza: (1.48-52) Maria é uma mulher pobre e simples; (2.7) Jesus nasce numa estrebaria; (2.8-12) é aos pobres pastores que o nascimento é anunciado primeiramente; (2.24) seus pais cumpre a Lei oferecendo a oferta dos pobres [Lv 12.8]; (3.10-14) João Batista ensina uma atitude simples e pobre; (4.18-21) em seu primeiro sermão Jesus diz  que veio para “anunciar a Boa Nova aos pobres”; (6.20-24) no Sermão do Monte onde Jesus faz referência ao pobre, Lucas inclui um “Aí” de juízo quanto aos ricos; (12.16-21) Jesus exorta na parábola o perigo de confiar nas riquezas; (12.33) Jesus exorta seus discípulos à vida simples e pobre; (14.12-14) seus discípulos devem evitar interesses mesquinhos ou cobiçosos; (16.14) os fariseus escarnecem de Jesus por causa de seu ensino sobre a pobreza e Jesus responde com duas parábolas que ensinam a precariedade dos bens materiais (16.19-31) e da necessidade de fazer bom uso dos bens (16.1-9); na sequência Zaqueu é apresentado como modelo a ser seguido (19.8s). Este ensino deveria levar os pregadores da prosperidade a uma reflexão e mudança no tom de suas pregações.
Evangelho da Salvação Universal: A preocupação de Lucas é de que seus leitores possam entender muito claramente que Jesus não é o Salvador de um povo especifico (judeus), mas de todos os povos. Começa fazendo uma relação direta entre um Imperador romano César Augusto, com seu decreto universal de recenseamento (2.1), que serve de pano de fundo para a comunicação angelical do nascimento do Cristo Senhor, o Salvador – e tal nascimento se constitui no autêntico “Evangélion” em contraste com os precários “Evangélia” dos Césares Romanos.[1] Jesus é o verdadeiro Augusto, que haverá de implantar a tão almejada era de paz e abundância para todos os povos.
Para deixar bem claro, Lucas faz questão de indicar que Jesus não é apenas o “Filho de Davi” ou o “Filho de Abraão” (cf MT 1.1), mas o “Filho de Adão” unindo tanto judeus quanto gentios. Simeão proclama esta preciosa verdade de que o menino em seus braços seria “luz para iluminar os gentios e glória do povo de Israel” (2.32). Ainda que acompanhe a citação de Isaías 40.3 feita por MT e Mc, ele acrescenta o verso 5: “E toda carne verá a salvação de Deus”, que inclui esta visão universal que permeia seu evangelho. A isto ele exemplifica incluindo os samaritanos (10.30-37; 17.16), a viúva de Sarepta e o sírio Naamã (4.25-27); pessoas virão de todas as nações para assentarem-se no reino de Deus (13.29); os anjos ao proclamarem a paz de Jesus incluem todos os homens (2.14).Caminhando para a conclusão deste seu primeiro volume ele registra as palavras de Jesus: “Estava escrito que o Cristo devia sofrer e ressuscitar no terceiro dia dentre os mortos e que em seu nome seria pregado o arrependimento ... a todas as nações, a começar por Jerusalém” (Lc 24.46s).
Entretanto, isto não significa que Israel tornou-se desnecessário (1.30-33), mas apenas demonstra que Israel deve ser um canal de bênção a todos os demais povos e não reter para si mesmo tão grande salvação.
O Evangelho das Figuras Antitéticas: Lucas utiliza de forma maravilhosa do contraste de figuras para representar atitudes de animo ou afetos antitéticos: (1.11-22 e 1.26-38) o anjo Gabriel aparece duas vezes para anunciar nascimentos milagrosos – a Zacarias que reage inicialmente com incredulidade e por isso fica mudo, e a Maria que recebe com toda a fé e por isso irrompe em cântico de louvor; (7.36-50) a pecadora arrependida é agraciada, enquanto Simão, o fariseu cheio de si, é repreendido; (10.38-42) duas irmãs que reagem diferentemente à chegada de Jesus em sua casa; (17.11-18) dez leprosos são igualmente curados, nove são judeus ingratos, um é samaritano que volta para agradecer e experimenta o perdão e a salvação; (18.9-14) dois homens sobem ao templo para orar, o fariseu soberbo nada obtém, mas o publicano humilde alcança misericórdia; (23.39-43) concluindo sua narrativa Lucas descreve a cena dos dois ladrões ladeando o Jesus crucificado, um permanece na incredulidade e o outro experimenta o arrependimento.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


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Referências Bibliográficas
ASH, Anthony Lee. O Evangelho Segundo Lucas. Tradução Neyd V. Siqueira. São Paulo: Editora Vida Cristã, 1980.
BETTENCOURT, Estevão. Para Entender os Evangelhos.  Rio de Janeiro: Agir, 1960.
CARSON D. A., DOUGLAS, J. Moo & MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo:  ed. Vida Nova, 1997.
CASALEGNO, Alberto. Lucas – a caminho com Jesus missionário. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado – versículo por versículo, v. II. São Paulo: Millenium, 1987.
________________________. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, v.3. São Paulo: Candeia, 1995.
GOODSPEED, Edgar J. An Introduction to the New Testament. Chicago, Illinois: University of Chicago Press,1937.
LEAL, João. Os Evangelhos e a Crítica Moderna. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1945.
MORRIS, Leon L. Lucas – introdução e comentário. São Paulo: Edições Vida Nova, 2008. [Série Cultura Cristã].
TENNEY, Merrill C. O Novo Testamento - sua origem e análise, 2a ed. São Paulo: Vida Nova, 1972.




[1] Na época dos Imperadores romanos, o termo recebeu ênfase particular. O Monarca era tido como personagem divino, doador e fautor de salvação para os súditos. Por isto eram consideradas boas noticias (eu-angélia) a proclamação do nascimento de um herdeiro do trono, a de sua maioridade e, principalmente, o anuncio de sua subida ao trono; tais acontecimentos marcavam a vida pública, causando imensa alegria entre os cidadãos, que julgavam cada vez, estar no limiar de era nova, portadora de paz e prosperidade, em oposição aos gemidos e calamidades de épocas anteriores. As datas de tão faustosos acontecimentos eram festejadas anualmente. Também os decretos imperiais, tidos como oráculos da Divindade, eram recebidos como eu-angélia (Bettencourt, Estevão. Como Entender os Evangelhos, Ed. Agir, 1960, p.56).

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