segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Hermenêutica: As Primeiras Escolas de Interpretação - Antioquia



A escola de Antioquia da Síria surgiu em oposição à de Alexandria, que dominou a hermenêutica bíblica nos primeiros séculos. Ela foi uma tentativa de coibir os abusos da espiritualização e apontar um caminho mais seguro, especialmente, quanto à leitura do Antigo Testamento. O fundador dessa escola foi Luciano de Antioquia (240-312 d.C.), a quem se atribui (apesar da falta de evidências) a tentativa de uniformização dos textos gregos existentes que deram origem ao texto Bizantino ou Sírio. Credita-se, assim, a Luciano o mérito de ter dado início a uma rica tradição de estudos bíblica marcada pela erudição e pelo conhecimento das línguas originais. A escola de Antioquia rejeitou a alegorese e sustentou que o texto bíblico deveria ser interpretado em seu sentido literal (histórico) a não ser que a passagem demonstrasse claramente tratar-se de uma alegoria. Quanto àquelas passagens, notadamente as profecias, em que se percebiam um sentido oculto e profundo além do literal, desenvolveram um conceito que ficou conhecimento como teoria. Vejamos a seguir os maiores expoentes da Escola de Antioquia.
2.1. Principais Representantes
Deodoro de Tarso (390 d.C.)
Escreveu um tratado intitulado Qual é a diferença entre contemplação e alegoria? No qual defende a “contemplação” ou theoria contra a alegoria que parecia impor um sentido forçado ao texto bíblico.
Ele também escreveu um comentário dos Salmos em que tentava explicar os princípios hermenêuticos sadios para a boa compreensão dos Salmos, procurando, assim, interpretá-los dentro do seu contexto histórico.
Teodoro de Mopsuéstia (350-428 d.C.)
Considerado o maior exegeta antioquiano, de acordo com Altaner (1988, p. 322), Teodoro comentou “com extraordinária sagacidade critica, nada comum na Igreja Antiga, quase toda a Bíblia”. Ele escreveu um tratado contra a interpretação alegórica chamada “Conceming allegoiy and history against Origen”, no qual obviamente criticava a interpretação de Orígenes. Na sua própria abordagem, ele procurou focalizar o sentido natural e literal, utilizando uma interpretação que mais tarde seria denominada gramático-histórica. Esta abordagem é evidenciada em sua obra sobre os salmos, em que procurou reconstruir as ocasiões prováveis nas quais os salmos foram escritos e tentou estabelecer o significado original pretendido pelo autor. Teodoro também limitou bastante o número de textos do Antigo Testamento que falam de Cristo, o que lhe rendeu a acusação de “judaizante” (como também mais tarde seria acusado Calvino). Além disso, ele tentou explicar textos, como a alegoria feita por Paulo em Gálatas 4.21-31, e a alegoria de Zacarias a Zorobabel (Zc 4.6-10), defendendo a tese de que a Escritura é um texto de camadas superpostas, por isso tanto o significado da história, bem como do evangelho, devem ser preservados na interpretação. As aparentes discrepâncias ele atribui à linguagem hiperbólica dos escritores que encontra pleno conhecimento em Cristo. Portanto, apesar de ele aceitar o elemento tipológico na Bíblia e encontrar passagens messiânicas nos salmos, explicou a maioria delas do ponto de vista histórico.
João, o Crisóstomo (407 d.C.)
“Crisóstomo” significa Boca de Ouro, apelido que João recebeu depois de sua morte e que é justificado pelo seu extraordinário dom da oratória. Renunciou a carreira de advogado para tornar-se monge. Após alguns anos vivendo nas montanhas, entre monges, numa vida austera, a ponto de prejudicar sua saúde, voltou a Antioquia onde foi ordenado diácono (381), presbítero (386) e nomeado para o ofício de pregador, função que exerceu por doze anos (397). Sua fama de pregador cresceu tanto que foi obrigado pelo Imperador a aceitar o bispado de Constantinopla (398). Apesar da vida conturbada, fruto das polêmicas nas quais se envolveu e que resultaram num exílio, ele produziu uma vasta obra literária composta fundamentalmente de sermões, mas também de alguns tratados e consideráveis números de cartas.
As homilias de Crisóstomo versam sobre aspectos doutrinais, polêmicos e exegéticos. Nas exegéticas, ele comentou grande número dos livros da Bíblia procurando explanar o sentido histórico dos textos. Crisóstomo defendia o princípio de que leituras alegóricas ou místicas dos textos bíblicos só deveríam ser admitidas se os próprios autores as sugerissem. Desta forma, “seus sermões eram exegéticos e eminentemente práticos. Fascinava nele a compreensão simples e gramatical das Escrituras” (WALKER, 1983, p. 188).
2.2. Considerações
À luz do exposto, fica evidente que a Escola de Antioquia tinha sérias restrições à leitura alegórica, mesmo se tratando de tipologia. Por outro lado, eles estavam conscientes das dificuldades com algumas passagens, especialmente as profecias do Antigo Testamento, pois não podiam negar que o sentido literal-histórico, às vezes, apontava para um sentido mais elevado, o sentido anagógico (escatológico). Este sentido é denominado de theoria, termo que designava o “estado mental dos profetas, quando recebiam visões [...] é uma instituição ou visão pela qual o profeta pode ver o futuro através das circunstâncias presentes” (LOPES, 2004, p. 136). Este princípio permitiu aos exegetas antioquianos conceber um sentido mais elevado para certas passagens sem, contudo abrir mão da âncora do sentido literal. Lopes (Idem, p. 135-236) resume os princípios de interpretação de Antioquia nos seguintes tópicos:
1. Sensibilidade e atenção ao sentido natural do texto
Era uma abordagem que poderia ser chamada de "gramático-histórica". Esse termo só apareceu após a Reforma, mas os princípios que caracterizavam esse tipo de interpretação já estavam presentes em Antioquia: procurar alcançar o sentido do texto através da busca da intenção do seu autor considerando o contexto histórico em que foi escrito.
2. Desenvolvimento do conceito de theoria
Esse termo designava o estado mental dos profetas em que recebiam as visões, em oposição à alegoria. Era uma intuição ou visão pela qual o profeta podia ver o futuro através das circunstâncias presentes. Depois da visão, era possível para ele descrever em seus escritos tanto o significado contemporâneo dos eventos como seu cumprimento futuro. A theoria era o princípio usado pelos antioquianos para se descobrir um sentido além do literal nas palavras dos profetas do Antigo Testamento, permanecendo-se fiel ao seu sentido natural.
3. Não negavam o caráter metafórico de algumas passagens
Reconheciam que havia um sentido mais profundo nas profecias do Antigo Testamento e que havia tipologias, como a que Paulo fez em Gálatas 4.21-31. Entretanto, afirmavam a historicidade da narrativa veterotestamentária e procuravam em seguida descobrir o sentido teológico da mesma.
4. Buscavam determinar a intenção do autor
Isto era feito pela atenção cuidadosa ao sentido histórico das palavras em seu contexto original.
5. Eram contra descobertas arbitrárias de Cristo no Antigo Testamento
Tais como as feitas pela alegorese (alegoria) alexandrina. Concordavam que Cristo estava presente nas Escrituras do Antigo Testamento, mas reagiam contra a ideia de que cada palavra, evento, numero, personagem ou instituição poderiam ser interpretados de forma alegórica de modo à sempre se encontrar Cristo nelas.

Manual de Hermenêutica Bíblica
Me. Israel Sifoleli
Mestre em Ciências da Religião
Docente da Faculdade Latino-americana
(FLAM)

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