2.400 Consultas
Ele acordou antes mesmo do sol nascer; na verdade
nem conseguiu dormir. Na noite anterior havia discutido novamente com seu pai.
Mostrou-lhe todos os motivos e razões para ter tomado a decisão de ir embora.
Como sempre o pai contra argumentou, lembrando-lhe dos riscos e perigos que lhe
aguardavam em lugares distantes, onde ele não conhecia ninguém e ninguém o
conhecia. Mas desta vez ele foi firme – a decisão estava tomada! Afinal de
contas ele já era um adulto e sabia muito bem tomar conta de si mesmo.
Há muito tempo que a fazenda não lhe dava mais
nenhuma satisfação. A rotina extenuante dos serviços intermináveis lhe
aborrecia muito. Alguns poucos amigos apenas agravavam ainda mais seu tedio,
pois as opções de lazer eram sempre as mesmas, as conversas nada traziam de
novidade – tudo lhe aborrecia.
E para completar o quadro, tinha seu irmão mais
velho. Sempre rabugento, cobrando dele o tempo todo mais responsabilidade. Nem
seu pai lhe cobrava e quem colocou seu irmão como seu tutor ou capataz?
Mas tudo isso estava para acabar. Enquanto arruma
uma pequena mala, com apenas algumas peças de roupas, sua mente divaga entre as
expectativas e sonhos que por tantos anos cultivou. Finalmente poderia explorar
o desconhecido! Conhecer novos lugares e novas pessoas. Ser livre para fazer o
que bem entendesse com sua vida.
O galo canta indicando que os primeiros raios de
sol estão despontando demarcando um novo dia – sim, pela primeira vez em muito
tempo ele se sente feliz e energizado para iniciar uma nova e emocionante etapa
de sua vida. Fecha a mala, sai do quarto e ao entrar na sala, como já esperava,
ali estava seu pai.
Sempre admirou seu pai! Homem bom e de uma
integridade incontestável. Sempre fora justo para com todos os seus empregados.
O pai não apenas tinha o respeito da comunidade, como sempre era procurado para
mediar os conflitos ocasionais que surgiam entre os moradores. Certa vez, até
mesmo uma desavença ocorrida em outro vilarejo lhe foi apresentado e com suas
palavras sabias e prudentes sempre conduziam as pessoas a uma reflexão e à
procura de uma solução conciliadora. O carinho e cuidado do pai eram tão grandes
que sempre compensou a ausência da mãe, que falecera logo após ele ter
desmamado. Mas apesar de saber o quanto o pai sofria pela perda de sua amada,
nunca ouvira uma palavra de murmuração sair da boca desse homem que aprendera a
respeitar.
Enfrentar o olhar amoroso de seu pai era sem duvida
o momento mais difícil desta decisão. Ensaiara inúmeras vezes esse momento – e não
iria retroceder como fizera em outras ocasiões. A decisão estava tomada! Ele
caminha na direção do pai, o abraça e dá-lhe um beijo carinhoso. Seu pai o olha
profundamente, beija-lhe o rosto e a testa e o abençoa!
Ao sair da casa sua montaria esta pronta e alguns
poucos empregados e dois ou três amigos o esperam para se despedir e
desejar-lhe boa viagem e boa sorte para onde ele for. Não é hora para
discursos, as palavras apenas o atrasariam. Acena rapidamente e começa sua nova
jornada. Ao ultrapassar a porteira da fazenda sente-se leve e tomado pela
empolgação acelera os passos do animal sentindo a brisa fresca da manhã batendo
suavemente em seu rosto. Sua próxima parada será no último vilarejo da região,
onde vai pernoitar.
Depois de um dia todo viajando, descanso por apenas
alguns minutos para que o animal se recuperasse e para que ambos comecem alguma
coisa – ele havia trazido algumas frutas. Avista uma pequena hospedaria, que
ele estivera ali com seu pai e irmão em uma das raríssimas ocasiões em que saíram
da fazenda até a grande cidade. Mais de dez anos se passaram, mas a hospedaria
permanecia como em suas lembranças. O mesmo casal ainda continuava atendendo os
peregrinos daquela estrava empoeirada. Eram gentis e logo lhe indicaram um
quarto e providenciaram água para o banho, avisando que o jantar seria servido
quando ele estivesse pronto. Refrescado e com roupas limpas, comeu com prazer a
refeição oferecida. Era hora de dormir, pois dentro de seu planejamento queria
sair bem cedo, a cidade grande ainda estava distante ao menos dois ou três dias
de viagem.
Finalmente, estava diante da porta de entrada da
grande cidade! O movimento, como sempre, era intenso. Enquanto percorria a rua
principal podia ouvir os mais diversos sons que se misturavam – vendedores dos
mais diversos produtos disputavam seus clientes. Parando próximo a uma pequena
barraca de utensílios de cerâmica pergunta à mulher onde encontrar uma
hospedaria de boa qualidade – ela indica uma que fica a quatro quarteirões para
frente.
A hospedaria era de fato de excelente qualidade,
ainda que o preço fosse um tanto extravagante. Ainda bem que o pai não lhe
negara sua parte da herança. Tinha dinheiro suficiente para muitos meses, quem
sabe até um ano inteiro. Mas logo que se ambientasse na cidade grande, iria
investir seu dinheiro em algum negocio lucrativo.
Com o passar dos dias conheceu diversos jovens que
como ele havia deixado seus lares e vieram para a cidade grande. A cada noite
uma festa diferente! Os dias se transformaram em semanas, em meses. Percebeu
que o dinheiro estava acabando e começou a procurar algum negocio para se
associar, mas nada lhe agradava. Procurou conselho entre seus novos amigos, mas
nenhum deles também tinha experiência comercial.
A hospedaria começou a ficar muito cara, então
procurou uma mais simples. Para economizar começou a lavar suas próprias roupas
e a fazer apenas a refeição da noite. Suas economias estavam sendo consumidas
rapidamente. Não vendo outra saída começou a procurar algum tipo de emprego,
mas encontrou apenas subempregos e ele não havia deixado a casa de seu pai para
aceitar qualquer trabalho.
Na mesma proporção em que seu dinheiro sumia,
também desapareciam os amigos. Aos poucos que sobraram solicitou-lhes ajuda
para indicarem algum emprego, mas a crise havia chegado forte na região e as
poucas vagas de trabalho que surgiam eram rapidamente ocupadas por pessoas
conhecidas – ele era um estranho.
De todo o dinheiro que havia recebido do seu pai,
restava-lhe apenas o suficiente, economizando muito, para no máximo um mês.
Tentou negociar com a hospedaria para pagar sua diária com serviços, mas o dono
não aceitou, alegando que precisa era de dinheiro e não de mais um empregado.
Depois de mais uma dezena de promessas infrutíferas
de trabalho, só lhe restava pagar a última semana na hospedaria. Pela última
vez tentar negociar sua permanecia em troca de trabalho, mas o dono recusou e
avisou que ele teria que deixar o quarto até a próxima segunda feira.
Os dias tornaram-se angustiantes, as noites
cansativas. Já era domingo e ele não conseguira absolutamente nada. Os amigos
desapareceram, nenhum deles lhe ofereceu ao menos um lugar para ficar, ainda
que provisoriamente. Já vendera praticamente tudo de valor que havia adquirido
desde que chegara à cidade grande. A última peça foi um turbante caro, que
comprara nos primeiros dias de sua chegada, quando a bolsa ainda estava cheia
de moedas. Era seu símbolo de autossuficiência. Todos lhe saudavam e admiravam,
quando usava o turbante. Tivera que vendê-lo por menos da metade do preço que
pagara – e foi com que passou essa última semana.
A segunda-feira fatídica amanhece e ao sair do
quarto da hospedaria, não tem nada para levar consigo, a não ser a roupa que
lhe cobre o corpo. Em um raro gesto de complacência o dono da hospedaria lhe
permite tomar seu último café da manhã. Enquanto se alimenta, pensa – e agora o
que vou fazer. Repudia mais uma vez a ideia de retornar a casa do pai. Ele não
desistiria de seus sonhos nos primeiros obstáculos.
Ao sair da hospedaria, sabia que não adiantaria
retornar, pois o dono lhe fora muito enfático de que sem dinheiro, nada de
hospedaria. As ruas movimentadas, que ao chegar lhe pareceram tão cheias de
vida e alegria, agora se tornam angustiantes e opressoras. As centenas de vozes,
antes sons festivos, tornam-se barulhos irritantes. As pessoas se esbarram
nele, como se ele não estivesse ali. No meio da multidão não encontra um rosto
amigável. Em meio à multidão nunca se sentira tão solitário.
Então um pequeno agrupamento lhe chama atenção. Ao
se aproximar ouve a voz forte de um homem, mas as pessoas falando ao mesmo
tempo, não lhe permite ouvir direito. Força sua entrada no pequeno grupo e
finalmente consegue avistar a pessoa que fala. Esta oferecendo emprego para
jovens que não tenham família e que possam morar no local do trabalho. A diária
é irrisória, mas ao menos a pessoa terá um lugar para ficar e comida uma vez
por dia. Muitos se afastam e permanece apenas ele e mais dois outros jovens. O
trabalho é em uma fazenda próxima da cidade grande e precisa ir imediatamente,
sem dia de folga. Diante da negativa dos dois outros, ele se dispõe e
imediatamente se põem a caminho.
Depois de quase um dia de caminhada chegam à
fazenda. Só então ele descobre que se trata de uma fazenda de criação de
porcos. Por que tinham que serem porcos? Com tantos animais no mundo, a fazenda
tinha que ser de criação de porcos! Pensou em desistir, mas estava tão cansado da
viagem e com tanta fome. Iria ficar por apenas alguns dias. Logo a crise haveria
de passar e outros empregos melhores apareceriam.
O contratante o conduz até um pequenino quarto – se
é que poderia chamar aquilo de quarto, ao lado da estrebaria e distante da casa
principal. Explica-lhe qual seria seu trabalho diário e que sua refeição seria
servida sempre no final do dia. Tentou se lavar com um mínimo de água que lhe
fora disponibilizada e aguardou com ansiedade sua refeição – a frustação foi
tão grande quanto a fome que lhe consumia as entranhas. Somente a fome poderia
lhe forçar a comer aquele alimento, o qual não teve coragem de perguntar o que
era. A canseira e as frustrações lhe proporcionaram um sono agitado e com
muitos pesadelos.
Foi despertado por gritos e ordens e assim começou
seu primeiro dia de trabalho. Ele não sabia que porcos comiam tanto e tão rápido.
Quanto mais os alimentavam, mais eles queriam ser alimentados. Os dias eram
longos, quentes e cansativos e as noites nem sempre melhores. O que recebia nem
lhe permitia ao menos comprar uma nova muda de roupa. Estava sempre tão cansado
que há muitos meses havia desistido de ir à cidade, ver se encontraria um novo
trabalho. Muito raramente encontrava alguém que vinha e ao ser perguntado sobre
trabalho a resposta era sempre a mesma – nada!
Perdera completamente a noção de tempo. Sabia que
estava ali a mais de um ano! Quanto tempo havia passado desde que sairá da casa
do pai? Três ou quatro anos? Um dia estava parado, olhando aqueles porcos
comendo com tanto apetite, que desejou compartilhar de suas refeições – mas havia
sido dito desde o primeiro dia que isso lhe era proibido.
Em uma tarde, exaurido pelos esforços e o calor do
dia, se deixou assentar-se em um tronco. Ali contemplando os porcos, começou a
recordar dos dias na fazenda do pai. Lembrou-se dos empregados, dos dormitórios
e das refeições... sentiu até mesmo o aroma agradável dos alimentos que eram
preparados diariamente para todos. Lágrimas rasgaram seu rosto sujo e queimado
do sol. Há quanto tempo não tomava um banho e colocava roupas limpas; há quanto
tempo não dormia em uma cama confortável e se alimentava de forma descente!
Agora já não era uma questão de orgulho, mas de
sobrevivência. Levantou-se resoluto, iria voltar à casa do seu pai. Comunicou
ao seu empregador que pela manhã iria embora. Tomou seu banho precário, comeu
sua refeição diária e tentou dormir. Antes mesmo do raiar do sol, já estava na
estrada. A caminhada seria longa e extenuante. Umas irrisórias moedas lhe
permitiriam em algum momento comprar algum alimento. Mas sabia que dependeria
da boa vontade de algumas pessoas, para poder completar seu trajeto de volta. Os
dias se transformaram em semanas. Longas semanas. Mas sabia que a cada
quilometro percorrido, a casa do pai ficava mais perto.
Finalmente! Esta próxima. Mais um dia no máximo e
estaria novamente na casa paterna. Então, seu coração dispara e sua mente
revive os dias que antecederam sua saída. Suas argumentações e autoconfiança;
seu orgulho e arrogância. Sairá bem vestido e com dinheiro, e agora retorna
maltrapilho e sem uma única moeda. E se o pai não lhe recebesse? E por que o
receberia! Ensaia o que haveria de dizer ao velho pai; declararia em alto e bom
som que realmente seria justo não ser mais tratado como um filho, mas que ao
menos permitisse que ele ficasse na fazenda como um dos diaristas. Repete seu
discurso, com pequenas variações, até que exausto dorme debaixo de uma árvore
em uma clareira à beira da estrada.
Acorda com a claridade do sol em seu rosto.
Levanta-se rapidamente. A proximidade do termino da viagem lhe anima a alma e o
corpo. Seus passos iniciais são
acelerados, mas vão diminuindo na medida em que a canseira e a fome lhe
apertam. Depois de uma pequena colina ele levanta os olhos e lá ao longe
contempla a entrada da pequena vila e ele sabe que ao final daquela rua
principal esta a fazenda do pai. Instintivamente ele para: seu coração aperta;
será que o pai está vivo? Será que vai recebê-lo de volta? Mas o que fazer? Não
tem alternativa, a não ser viver como um mendigo. Olha para si e sente todo o
peso de sua vergonha. Como fora estupido!
Na medida em que se aproxima da pequena vila suas
pernas parecem pesar uma tonelada cada uma; seus passos são lentos; sua
garganta queima de sede e seu estomago de fome. Na media em que caminha percebe
que poucas coisas mudaram. Ao entrar na rua principal percebe imediatamente os
olhares curiosos das pessoas sobre ele. Certamente que ninguém haveria de
reconhecê-lo; em nada ele se assemelha aquele jovem orgulhoso que havia saído em
sua montaria por aquela mesma rua. Não poucas pessoas lançam lhe olhares de
repudio e desaprovação por sua situação deplorável. De fato não passava de um mendigo e
maltrapilho.
Então percebe que as pessoas deixaram de olhar para
ele, estão todos olhando na direção à sua frente. Levanta a cabeça e seus olhos
não acreditam. Correndo em sua direção vem seu pai! Antes mesmo que pudesse dar
mais alguns passos o velho pai o
alcança – abraça-o,
e o beija não se
importando com seu estado deplorável, não se incomodando com seu mau cheiro.
Entre abraços e beijos do pai, ele tenta falar o discurso que exaustivamente ensaiou
durante toda a jornada de volta.
Mas o pai não espera o discurso acabar e começa a
gritar para todos os que começam a se aproximar para verem aquela cena familiar
– ESTE MEU FILHO ESTAVA MORTO E REVIVEU, ESTAVA PERDIO E
FOI ENCONTRADO!!
Ordena que me trouxesse sandálias para os pés e
roupas limpas, me devolvendo a cidadania que havia perdido; coloca seu anel em
meu dedo, resgatando minha filiação, que soberbamente havia renegado.
E por fim, ordena aos seus empregados, que vieram ver
o que estava ocorrendo, para que se matasse um novilho, animal mais caro e então
meu pai convida a todos os moradores da vila para festejarem com ele. Um
espírito de festa e celebração domina a todos e juntos formam um coro de acompanhantes
em direção à entrada da fazenda. E juntamente com meu pai ouço agora um coro
proclamando:
ESSE MEU FILHO ESTAVA MORTO E REVIVEU!
ESTAVA PERDIDO E FOI ENCONTRADO!
Disse Jesus: Não há maior jubilo nos céus, do que quando um pecador que se
arrepende!!!
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan
Pereira Mestre em Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
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