sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

NT – Epístolas Pastorais

      
Na forma com que os livros do Segundo Testamento foram organizados em nossas bíblias, as correspondências paulinas estão colocadas logo após o livro de Atos. Elas foram divididas em dois subgrupos: as nove primeiras são endereçadas a comunidades com as quais Paulo manteve relacionamento pessoal ou de afinidades (Romanos a Tessalonicenses) e as quatro últimas são endereçadas a indivíduos (1 e 2 Timóteo, Tito e Filemom). Elas não estão organizadas por ordem cronológica, mas por ordem lógica decrescente segundo o tamanho, tendo como exceção a epístola aos Gálatas que precede a de Efésios.  Estas correspondências produzidas pelo Apóstolo Paulo são fundamentais para compreendermos o que acontecia nos bastidores das comunidades cristãs do primeiro século.
A História do Cristianismo ou da Igreja nos revelam que desde seus primeiros dias houve dificuldades infligidas pelos opositores externos, primeiro por parte dos judeus, que viam nos cristãos uma seita e na sua mensagem heresias que desvirtuavam a religião judaica fundamentada no Primeiro Testamento legado por Moisés, os profetas e demais escritos milagrosamente preservados e tomados por inspirados por Deus; posteriormente as perseguições foram efetivadas pelo próprio Império Romano, que passaram a ver que o cristianismo era muito mais que apenas uma seita do judaísmo, e que em sua expansão indescritivelmente rápida por todo o Império começava a tomar contornos perigosos para o Estado e, portanto, deveriam ser devidamente enquadrados ou extirpados, como se faziam com qualquer outro inimigo.
Desta forma poderíamos ser iludidos pela ideia romântica de que as comunidades cristãs foram vitimas unicamente de inimigos externos cruéis e sedentos de sangue, mas ao lermos as cartas de Paulo dirigidas às comunidades, bem como a seus companheiros de atividades missionárias, tomamos conhecimento de que internamente elas travavam diversas batalhas, quer sejam as relacionadas às doutrinas que estavam sendo estabelecidas como padrão de fé, como também outras relacionadas a questões interpessoais tão peculiares à mesquinhez dos relacionamentos humanos.
Nas páginas evangélicas já percebemos estas questões vindo à tona nos relacionamentos dos próprios apóstolos, onde há disputas abertas sobre quem seria o maior entre eles; em Atos o escritor deixa transparecer também que desde seus primeiros dias as comunidades cristãs experimentam dificuldades internas, mesmo antes das perseguições judaicas, como foi o caso das viúvas que estavam sendo negligencias e que somente se resolveu com a eleição de diáconos que foram investidos de autoridade para tratar a questão. Mas é nas epístolas paulinas que podemos acompanhar o quanto estas questões internas se ampliavam na mesma proporção em que elas se multiplicavam por todas as partes, quer nos grandes centros urbanos ou nos pequenos vilarejos, quer por parte de sua membresia ou entre suas lideranças eclesiásticas. Antes de ser uníssona e harmoniosa o desenvolvimento destas comunidades geraram muitas divergências, disputas e lagrimas.
Além das cartas dirigidas às comunidades que de alguma forma se relacionavam à sua vida e trabalho missionário, encontramos um pequeno e seleto grupo de cartas pessoais de Paulo, dirigidas a seus amigos e companheiros: Filemom, Timóteo e Tito. O Cânon Moratori, uma das primeiras listas oficiais dos documentos que compõe nosso Segundo Testamento, se refere a estes escritos “como expressão do sentimento e afeto pessoal” (Barclay, 1974, p. 09), pois são correspondências privadas mais do que públicas.
A pequena carta dirigida a Filemom trata especificamente da preocupação do apóstolo com o destino de um escravo foragido chamado Onésimo e que preso, provavelmente evangelizado por Paulo, agora precisa retornar ao seu senhor Filemom; as duas destinadas a Timóteo e uma a Tito tratam sobre alguns temas doutrinários e se preocupa particularmente com algumas questões eclesiásticas, sendo por isso desde muito cedo denominadas de cartas e/ou epistolas pastorais pelos seus estudiosos.
Neste momento dos nossos estudos sobre as correspondências paulinas daremos atenção especial a estas três cartas, que nos revelam o apóstolo na última fase de suas atividades missionária e pastoral e de forma peculiar a segunda correspondência dirigida a um não mais tão jovem Timóteo, sendo que para nós esta carta torna-se o “canto do cisne” do velho e valoroso apóstolo dos gentios.

Cartas Pessoais ou Pastorais?
            Os três documentos do corpus paulino destinados a Timóteo e Tito desde o século XVIII foram denominadas de “Epístolas Pastorais”, primeiramente por D.N. Bardot (1703), e posteriormente popularizadas por Paul Anton (1726) em uma série de palestras que apresentou sobre elas e que logo se tornou popular na Alemanha e desde então esta designação tem sido usado de forma universal pelos estudiosos e comentaristas bíblicos.
            Todavia se faz necessário fazermos ressalvas quanto a esta forma de denomina-las, pois elas não são necessariamente manuais de organização eclesiásticas, “pois as pastorais não oferecem instruções  detalhadas sobre como deve funcionar a ordem da Igreja. 2 Timóteo não trata do assunto e Tito o faz apenas de maneira esquemática” (COLLINS, p. 110-111, apud, BROW, 2004, p. 8360). Elas na verdade não incluem todos os deveres e ocupações de um pastor, também não entra nos detalhes mais profundos da função pastoral, o que se esperaria de um manual de instrução, caracterizando-se como breves cartas; há muito nelas que se refere unicamente a circunstâncias puramente locais e às condições peculiares ao período em que foram escritas, de maneira que em seu conteúdo geral elas não tratam especificamente com questões pastorais.
            É oportuno relembrar que as comunidades cristãs do primeiro século não possuíam toda esta estrutura organizacional que foi desenvolvida pelas igrejas ao longo dos séculos. Eram comunidades pequenas e funcionavam com uma estrutura muito simples e com papeis muito bem definidos de suas lideranças eclesiásticas, de maneira que, não é hermeneuticamente correto levarmos para dentro destas epistolas toda a complexidade eclesiástica moderna.
            Provavelmente por causa desta alcunha de “pastorais” estas três cartas acabaram sendo preteridas pelos leitores comuns da Bíblia. Entretanto, elas são de fundamental importância para compreendermos as implicações do rápido crescimento das comunidades cristãs em seus primórdios. Nos tempos modernos elas têm sido tratadas como sendo resultantes de documentos subapostólicos, produzidas não pelo próprio Paulo, mas por cristãos da chamada segunda geração. Mas pelo simples fato de que se constituem em preciosos documentos elaborados quando a Igreja começava sua trajetória para institucionalizar-se, falam mais diretamente à nossa situação e condição atual.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


BARCLAY, William. El Nuevo Testamento comentado. Buenos Aires (Argentina), Asociación Editorial la Aurora, 1974.
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