Os que amam sempre percebem que o cântico é a única expressão adequada para sentimentos intensos, prazer arrebatador, compromisso profundo. Dominados pelo desejo de dar-se para o outro e de receber dele o que não se pode pedir, não inventam fórmulas, não preparam receitas, não escrevem rituais, não desenham mapas, não elaboram gráficos. Cantam. Encontram nas Escrituras Sagradas o melhor dos cânticos.
LASOR, William S.
Os séculos se passaram, mas a literatura contida na primeira parte da
Bíblia continua sendo lida por milhões de pessoas. Grande parte desses leitores
compartilha da mesma perspectiva de que são textos inspirados por Deus e, portanto,
devem ser tomados como regra de fé e pratica. Mas, outra parcela significativa
de leitores, mesmo que avessos à conotação religiosa dos textos são atraídos
pelas qualidades inerentes de sua temática, capaz de comover e encantar. As
questões da autoria desses textos sempre são muito discutidas, bem como as
datas exatas em que eles foram escritos, mas de nenhuma forma estas discussões
e outras que serão aqui abordados de forma introdutória, são capazes de ofuscar
a beleza da sua forma literária, que têm emocionado os seus milhões de leitores
ao longo dos séculos e continua impactando leitores ainda hoje.
Mas sem dúvida alguma, dentre todos
os textos que compõem o Primeiro Testamento [AT], nem um têm produzido mais
fascinação e discussão do que o pequeno livro poético – Cântico dos Cânticos também denominado de Cantares e/ou Cantares de
Salomão. O título “Cântico dos
Cânticos” é um hebraísmo para expressar o superlativo “sîr hassîrîm” (Ct
1.1), que traz a ideia de excelência, o que está acima dos outros. No sentido
literário refere-se à sua beleza e plasticidade poética e no sentido histórico
a consagração da tradição poética de Israel. A Vulgata, tradução latina, é que
popularizou o título de “Canticum
Canticorum”, donde vem o título alternativo “Cantides” ou “Cantares”. Desta
forma, a expressão Cântico dos Cânticos
demonstra o desejo do escritor em realçar a relevância desse livro.
Seu conteúdo explicitamente
sensual produz um forte contraste de seus pares literários e muitas vezes seu
conteúdo acaba sendo “escondido” por
aqueles que detêm a responsabilidade de expô-lo para as novas gerações de
leitor-ouvintes nos dias presente.
O singelo esforço que faço aqui é tão
somente o de fazer realçar a beleza desse interlúdio lírico cuja mensagem
precisa não somente ser redescoberta, mas também deve ser colocada em prática,
pois fornece uma excelente receita para uma vida conjugal prazerosa e feliz,
bem como serve de parâmetros para uma prática sexual que confronta abertamente
a inconsequente libertinagem e permissividade que a Sociedade tem adotado
nesses últimos tempos, dos quais as novelas brasileiras se constituem um triste
retrato deste degradante contexto.
Diante de um quadro social cada vez mais caótico, onde o número de
divórcios aumentam assustadoramente, em que o número de meninas e adolescentes
grávidas parece não declinar e a liberalidade sexual é ensinada didaticamente
nos meios de comunicação, torna-se urgente “descobrir” esse precioso livro do Cântico dos Cânticos e seu salutar e
libertador ensino sobre as temáticas sexuais, sem medo e sem pudor moralista,
pois se trata de um livro que detêm exatamente o mesmo valor e relevância dos
demais livros que conjuntamente formam a primeira parte da Bíblia.
Contexto
Histórico
A leitura do texto arremete aos dias do reinado de Salomão, no início da
monarquia israelita. Percebe-se um período de tranquilidade e paz onde o casal
central desenvolve sua história amorosa, o que corrobora para o período áureo
dos reinados de Davi (ao final) e Salomão.[1] As diversas referências a
animais e plantas exóticas também arremetem ao vasto conhecimento adquirido por
Salomão. As citações geográficas indicadas na história também fortalece o
período inicial quando o reino estava unificado, tais como Tirza,[2] Sarom, Líbano, Hermom e
Carmelo na região ao norte e Jerusalém e Em-Gedi, ao sul. Inclui ainda os
territórios de Hesbom e Gileade na Tansjordânia, indicando estarem todos sob um
mesmo governo, o que não mais ocorreu após a morte de Salomão e a divisão do
reino. A abundância de mercadorias, principalmente perfumaria, exóticas
advindas do Extremo Oriente corresponde ao forte período de comercio exterior
promovido nos dias do reinado salomônico.[3]
Autoria
Como referido acima, a questão da autoria
do livro é bastante discutida. Muitos estudiosos atuais têm negado a autoria de Salomão, bem como o
contexto histórico acima mencionado. Para esses críticos literários o livro é
na verdade uma coletânea de canções que eram entoadas nas celebrações nupciais
(GORDIS, 1974, apud, ORR, 2008, p 973). Entretanto, é possível se perceber na
redação um conjunto de vocabulários e de ideias que permite concluir que há um
autor comum.
Alguns argumentos contrários à
autoria do rei israelita: há 49 palavras que aparecem somente neste livro;
utilizam-se palavras ou expressões semelhantes ao aramaico somente encontrado
nas composições pós-exílicas, de fontes persas e gregas. Uma resposta a essas questões é de que ao se
referir a termos técnicos das especiarias culinárias e de perfumaria
estrangeiras, utilizam-se os termos da origem deles, o que é comum em qualquer
transliteração de palavras estrangeiras. Após citar os argumentos gramaticais
contrários à autoria de Salomão e demonstrar que não são tão relevantes como
parecem à primeira vista, Dockery conclui: “Em
resumo, o vocabulário de Cântico dos Cânticos não comprova que se trata de uma
obra de composição posterior” (2001, p. 411).
A própria narrativa traz
algumas referências diretas a Salomão. A primeira abre o livro “Cântico dos cânticos de Salomão” (1.1),
entretanto esta preposição “de” no
hebraico pode ser entendida como: “para
Salomão” ou “sobre Salomão”.
Deste modo a história pode ser da autoria pessoal de Salomão, como também de
alguém que dedicou a história a ele ou ainda que se escreveu inspirado nas
referências amorosas dele (HILL e WALTON, 2006, p. 411). Todavia, como analisa
corretamente Redford a preposição aqui utilizada é a “auctoris lamedh” (לְִשל)
“que é de Salomão” e se o sentido
fosse cântico “sobre Salomão”, outra
preposição (עַל) teria sido
utilizada. É relevante também a observação feita por Delitzsch em seu
comentário ao título, de que a ausência de qualquer descrição de Salomão como
"Rei de Israel" ou "filho de Davi", como em Provérbios
e Eclesiastes, confirma a visão de que o próprio Salomão era o único autor. Nas
demais menções diretas (1.5; 3.7, 8,11; 8.11,12) não é possível embasar uma
afirmação explicita dele como autor, ainda que sua capacidade literária seja
atestada (1 Rs 4.29-34).
Outro argumento que reforça a
autoria salomônica é o fato de que há uma semelhança literária entre a
narrativa bíblica e a narrativa poética egípcia. A temática e ideias que tecem
a história de Cantares são possíveis de serem encontradas nas canções de amor
produzidas no Egito no período de 1300 e 1100. A relação de Salomão com o Egito
vai muito além da formalidade de seu casamento com a filha do faraó. Avido de
conhecimento (1Rs 4.29-34) ele manteve-se em contato com a cultura egípcia e
com certeza familiarizou-se com a literatura poética anteriormente produzida
por eles. Por outro lado, para aqueles que argumentam contra a autoria
salomônica, fica o ônus de explicar por que Cântico dos Cânticos tem tanto em
comum com a poesia egípcia antiga se foi composto cerca de 650 depois de
Salomão. Como tão bem coloca Dockery:
Um obscuro compositor judeu, trabalhando um milênio depois
que esse tipo de poesia romântica foi produzido no Egito, não poderia ter
escrito acidentalmente uma obra tão parecida com a poesia egípcia. Também não é
razoável argumentar que ele conhecia e havia imitado de maneira deliberada uma
forma de arte antiga, estrangeira e provavelmente esquecida naquela época.
(2001, p. 412).
Alguns críticos têm levantado
a hipótese de que o autor seja do Reino
do Norte, durante o período inicial do reino divido, tendo como base o fato
de que a narrativa coloca Tirça (Tirtzáh) capital do Reino do Norte, no mesmo
nível de Jerusalém, capital do Reino do Sul e levando em conta os diversos
pontos de referências nortistas cheias de lugares pitorescos que proporciona o
contexto idílico do poema. O fato de que o Norte tinha diversas fronteiras os
tornavam mais propensos à influência dos povos vizinhos, tanto na cultura
quanto na linguística.
Nessas últimas décadas tem florescido a ideia de que o poema tenha sido
escrito por uma mulher. Uma das razões citadas está no fato de que em nenhum
momento se faz referência à figura do progenitor (pai) da personagem central,
mas todas as referências são à progenitora (mãe) dela, o que contrasta
fortemente com o período patriarcal da época e acentuadamente israelita/judaica
(PERRIER, 1970-1971, p. 143-144, apud CAVALCANTI, 2005, p. 25).
O fato de que os judeus o colocaram no conjunto canônico de literatura
religiosa,[4] tendo como referência a
autoria salomônica, se constitui em forte argumento de sua autenticidade e
corroborado por amplo testemunho histórico.[5] De maneira que se torna
natural aceitarmos que o livro foi escrito neste período salomônico.
Data
Partindo de uma análise
literária, o poema foi escrito em um hebraico maduro, ainda que haja diversas
palavras estrangeiras, conforme acima mencionadas. A maioria das referências e
alusões no Cântico conduz à autoria indicada no primeiro verso – Salomão.
Diversos estudiosos judeus
optam pela autoria do rei Ezequias, de Judá (HILL e WALTON, 2006, p. 411), uma
vez que ele é o grande guardião da literatura de sabedoria israelita (Pv 25.1;
cf 2Cr 32.27-29). Há também os que advogam uma data tardia, séc. III, todavia, esbarram
no fato de que não daria tempo do livro ser incluído na versão grega da
Septuaginta, no final daquele século.
Desta forma, sendo a obra um
panegírico composto em homenagem ao rei por alguém ligado ao círculo salomônico
e o escritor sendo da região norte, explicam-se mais facilmente as
peculiaridades do vocabulário e fraseologia, conforme referida acima. Portanto,
as indicações acima nos conduzem a fixarmos o tempo da composição no período do
reinado de Salomão no final do século X a.C.
Canonicidade
Como mencionado acima o fato do livro de Cantares ter sido incluído no
cânon veterotestamentário foi fundamental para que ele fosse não apenas
preservado, mas aceito como inspirado. Todavia, não significa que foi uma
inclusão unanime e fácil. Houve inúmeras barreiras que precisaram ser
transpostas até o famoso Conselho de Jâmnia ou Yavne, onde todas e quaisquer
questionamentos em relação a permanência de Cantares entre a literatura
canônica foi ratificada.
Cantares está incluído na terceira parte da Bíblia Hebraica, denominado
de Escritos (heb. Ketûbim), que no início do período cristão foi cunhado de “hagiógrafa”
(escritos sagrados). Nos dias de Jesus já havia a tríplice divisão do cânon
hebraico: Pentateuco (livros de
Moisés), Profetas (incluindo os que
denominamos históricos) e Salmos[6]
e/ou Escritos.
Dentro dos Escritos há uma subdivisão denominada de “Megilloth” ou
“Rolos” que eram lidos durante as cinco grandes festas religiosas dos judeus,
de maneira que Cântico dos Cânticos
era lido durante a Festa da Páscoa, a
maior e mais significativa festa do calendário judaico.
As palavras do rabino Akiba (c. 100 d.C.) deixa bem claro a posição
oficial dos judeus em relação ao livro de Cantares: “O mundo inteiro não é digno do dia em que Cântico dos Cânticos foi dado
a Israel; todos os Escritos são santos, e Cântico dos Cânticos é o santo dos
santos”. (LASOR, 1999, p. 558).
OS
ESCRITOS E/OU HAGIÓGRAFOS
Terceira
Parte do Cânon Hebraico
|
Livros
Poéticos
|
Salmos “Livro dos Louvores”
|
Jó
|
Provérbios
|
Rolos
(Lido nas Festas)
|
Cantares
e/ou Cântico dos Cânticos (8º dia da festa da Páscoa)
|
Rute (Pentecostes e/ou festa das
Colheitas)
|
Lamentações
[de Jeremias] (Proclamação da Destruição de Jerusalém)
|
Eclesiastes (festa dos Tabernáculos)
|
Ester
(festa do Purim)
|
História
|
Daniel
|
Esdras-Neemias
|
Crônicas (1 e 2)
|
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan
Pereira
Mestre em
Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
Próximo: Como Cantares Tem Sido Interpretado
Artigos
Relacionados
OS LIVROS POÉTICOS E DE SABEDORIA -
Canonicidade e Posição no Cânon Hebraico/Cristão
http://reflexaoipg.blogspot.com.br/2016/02/os-livros-poeticos-e-de-sabedoria_9.html
CÂNONES DO ANTIGO TESTAMENTO
http://reflexaoipg.blogspot.com.br/search/label/VT%20-%20C%C3%A2non
GLOSSÁRIO BÍBLICO
http://reflexaoipg.blogspot.com.br/search/label/Gloss%C3%A1rio%20B%C3%ADblico
Referências
Bibliográficas
CAVALCANTI, Geraldo Holanda. O cântico dos cânticos – um ensaio de
intepretação através de suas traduções. São Paulo: Editora Universidade de
São Paulo, 2005.
DOCKERY, David S. (Org.). Manual bíblico vida nova. [Tradução Lucy Yamakami, Hans Udo Fuchs,
Robison Malkomes]. São Paulo: Vida Nova, 2001.
HILL, Andrew E. e WALTON, J. H. Panorama do Antigo Testamento. São
Paulo, Editora Vida, 2006.
LASOR, William S., HUBBARD, David A. e BUSH
Frederic W. Introdução ao Antigo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999.
KEIL, C. F. e DELITZSCH, Franz. Commentary
on the Old Testament - The Song of Solomon.
Massaschusetts: Hendrickson Publishers, 2006. [edition originally
published by T. & T. Clark, Edinburgh, 1866-91.
ORR, R. W. Cântico
dos Cânticos. In: BRUCCE, F. F.
(org.) Comentário
bíblico NVI – Antigo e Novo Testamento [tradução: Valdemar Kroker]. São Paulo:
Editora Vida, 2008.
PERRIER, François. Lamour – séminaire 1970-1971. Paris, Hachette, 1998, pp.143-144.
REDFORD, R. A. e
CAFFIN, B. C. Song of Salomon.
[Serie: Pulpit Commentary]. London e New York: Funk & Wagnalls, 1913.
YOUNG, Edward J. Una introduccion al Antiguo Testamento. USA: Ed. TELL, 1977 [1ª
versão espanhol].
GORDIS, Robert. The Song of Songs and Lamentations. New
York, 1974.
[1] Depois do período da paz salomônica,
somente no sec. IV a.C., com o advento do Império Medo-Persa que houve uma
pacificação semelhante em toda terra de Israel, conhecida como a Pax Pérsica,
de maneira que qualquer pessoa podia viajar por todo o país livremente, desde
Em-Gedi até o Líbano (ORR, 2008, p. 974).
[2] A narrativa coloca Tirza e Jerusalém
como cidades equivalentes (6.4), o que foi possível somente no reino unificado,
pois após a divisão e nos dias de Onri (886-874 a.C.) Samaria assume o centro
das atenções como nova capital do reino do norte. Deste modo, a indicação
realça o fato de que o contexto histórico da narrativa se passa antes dos dias
de Onri.
[3] O comércio entre o norte da índia e a
Mesopotâmia estava bem estabelecido no terceiro milênio a.C, como certamente
era com o Egito, de modo que na época de Salomão havia uma longa tradição de
contatos comerciais com o Extremo Oriente. E Dockery (2001) destaca: “... só nessa época que Jerusalém possuía
especiarias, perfumes e artigos de luxo mencionados no livro, assim como
grandes quantidades de ouro, mármore e joias preciosas” (Ct 5.14-15; veja
IRs 10.14-22).
[4] Apesar de estar no cânon do AT o livro
de Cantares não é citada uma única vez em todo o NT.
[5] O livro indica ser de autoria de
Salomão e Baba Bathra 15ª não contradisse esta opinião. (YOUNG, 1977, p. 355).
[6] Essa terceira parte era chamada assim,
inclusive por Jesus, porque era o primeiro livro desta terceira parte da Bíblia
Hebraica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário