quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

CÂNTICO DOS CÂNTICOS – Introdução


Os que amam sempre percebem que o cântico é a única expressão adequada para sentimentos intensos, prazer arrebatador, compromisso profundo. Dominados pelo desejo de dar-se para o outro e de receber dele o que não se pode pedir, não inventam fórmulas, não preparam receitas, não escrevem rituais, não desenham mapas, não elaboram gráficos. Cantam. Encontram nas Escrituras Sagradas o melhor dos cânticos.
LASOR, William S.

            Os séculos se passaram, mas a literatura contida na primeira parte da Bíblia continua sendo lida por milhões de pessoas. Grande parte desses leitores compartilha da mesma perspectiva de que são textos inspirados por Deus e, portanto, devem ser tomados como regra de fé e pratica. Mas, outra parcela significativa de leitores, mesmo que avessos à conotação religiosa dos textos são atraídos pelas qualidades inerentes de sua temática, capaz de comover e encantar. As questões da autoria desses textos sempre são muito discutidas, bem como as datas exatas em que eles foram escritos, mas de nenhuma forma estas discussões e outras que serão aqui abordados de forma introdutória, são capazes de ofuscar a beleza da sua forma literária, que têm emocionado os seus milhões de leitores ao longo dos séculos e continua impactando leitores ainda hoje.
            Mas sem dúvida alguma, dentre todos os textos que compõem o Primeiro Testamento [AT], nem um têm produzido mais fascinação e discussão do que o pequeno livro poético – Cântico dos Cânticos também denominado de Cantares e/ou Cantares de Salomão. O título “Cântico dos Cânticos” é um hebraísmo para expressar o superlativo “sîr hassîrîm” (Ct 1.1), que traz a ideia de excelência, o que está acima dos outros. No sentido literário refere-se à sua beleza e plasticidade poética e no sentido histórico a consagração da tradição poética de Israel. A Vulgata, tradução latina, é que popularizou o título de “Canticum Canticorum”, donde vem o título alternativo “Cantides” ou “Cantares”. Desta forma, a expressão Cântico dos Cânticos demonstra o desejo do escritor em realçar a relevância desse livro.
Seu conteúdo explicitamente sensual produz um forte contraste de seus pares literários e muitas vezes seu conteúdo acaba sendo “escondido” por aqueles que detêm a responsabilidade de expô-lo para as novas gerações de leitor-ouvintes nos dias presente.
            O singelo esforço que faço aqui é tão somente o de fazer realçar a beleza desse interlúdio lírico cuja mensagem precisa não somente ser redescoberta, mas também deve ser colocada em prática, pois fornece uma excelente receita para uma vida conjugal prazerosa e feliz, bem como serve de parâmetros para uma prática sexual que confronta abertamente a inconsequente libertinagem e permissividade que a Sociedade tem adotado nesses últimos tempos, dos quais as novelas brasileiras se constituem um triste retrato deste degradante contexto.
            Diante de um quadro social cada vez mais caótico, onde o número de divórcios aumentam assustadoramente, em que o número de meninas e adolescentes grávidas parece não declinar e a liberalidade sexual é ensinada didaticamente nos meios de comunicação, torna-se urgente “descobrir” esse precioso livro do Cântico dos Cânticos e seu salutar e libertador ensino sobre as temáticas sexuais, sem medo e sem pudor moralista, pois se trata de um livro que detêm exatamente o mesmo valor e relevância dos demais livros que conjuntamente formam a primeira parte da Bíblia.

Contexto Histórico
            A leitura do texto arremete aos dias do reinado de Salomão, no início da monarquia israelita. Percebe-se um período de tranquilidade e paz onde o casal central desenvolve sua história amorosa, o que corrobora para o período áureo dos reinados de Davi (ao final) e Salomão.[1] As diversas referências a animais e plantas exóticas também arremetem ao vasto conhecimento adquirido por Salomão. As citações geográficas indicadas na história também fortalece o período inicial quando o reino estava unificado, tais como Tirza,[2] Sarom, Líbano, Hermom e Carmelo na região ao norte e Jerusalém e Em-Gedi, ao sul. Inclui ainda os territórios de Hesbom e Gileade na Tansjordânia, indicando estarem todos sob um mesmo governo, o que não mais ocorreu após a morte de Salomão e a divisão do reino. A abundância de mercadorias, principalmente perfumaria, exóticas advindas do Extremo Oriente corresponde ao forte período de comercio exterior promovido nos dias do reinado salomônico.[3]

Autoria
            Como referido acima, a questão da autoria do livro é bastante discutida. Muitos estudiosos atuais têm negado a autoria de Salomão, bem como o contexto histórico acima mencionado. Para esses críticos literários o livro é na verdade uma coletânea de canções que eram entoadas nas celebrações nupciais (GORDIS, 1974, apud, ORR, 2008, p 973). Entretanto, é possível se perceber na redação um conjunto de vocabulários e de ideias que permite concluir que há um autor comum.
Alguns argumentos contrários à autoria do rei israelita: há 49 palavras que aparecem somente neste livro; utilizam-se palavras ou expressões semelhantes ao aramaico somente encontrado nas composições pós-exílicas, de fontes persas e gregas. Uma resposta a essas questões é de que ao se referir a termos técnicos das especiarias culinárias e de perfumaria estrangeiras, utilizam-se os termos da origem deles, o que é comum em qualquer transliteração de palavras estrangeiras. Após citar os argumentos gramaticais contrários à autoria de Salomão e demonstrar que não são tão relevantes como parecem à primeira vista, Dockery conclui: “Em resumo, o vocabulário de Cântico dos Cânticos não comprova que se trata de uma obra de composição posterior” (2001, p. 411).
A própria narrativa traz algumas referências diretas a Salomão. A primeira abre o livro “Cântico dos cânticos de Salomão” (1.1), entretanto esta preposição “de” no hebraico pode ser entendida como: “para Salomão” ou “sobre Salomão”. Deste modo a história pode ser da autoria pessoal de Salomão, como também de alguém que dedicou a história a ele ou ainda que se escreveu inspirado nas referências amorosas dele (HILL e WALTON, 2006, p. 411). Todavia, como analisa corretamente Redford a preposição aqui utilizada é a “auctoris lamedh” (לְִשל) “que é de Salomão” e se o sentido fosse cântico “sobre Salomão”, outra preposição (עַל) teria sido utilizada. É relevante também a observação feita por Delitzsch em seu comentário ao título, de que a ausência de qualquer descrição de Salomão como "Rei de Israel" ou "filho de Davi", como em Provérbios e Eclesiastes, confirma a visão de que o próprio Salomão era o único autor. Nas demais menções diretas (1.5; 3.7, 8,11; 8.11,12) não é possível embasar uma afirmação explicita dele como autor, ainda que sua capacidade literária seja atestada (1 Rs 4.29-34).
Outro argumento que reforça a autoria salomônica é o fato de que há uma semelhança literária entre a narrativa bíblica e a narrativa poética egípcia. A temática e ideias que tecem a história de Cantares são possíveis de serem encontradas nas canções de amor produzidas no Egito no período de 1300 e 1100. A relação de Salomão com o Egito vai muito além da formalidade de seu casamento com a filha do faraó. Avido de conhecimento (1Rs 4.29-34) ele manteve-se em contato com a cultura egípcia e com certeza familiarizou-se com a literatura poética anteriormente produzida por eles. Por outro lado, para aqueles que argumentam contra a autoria salomônica, fica o ônus de explicar por que Cântico dos Cânticos tem tanto em comum com a poesia egípcia antiga se foi composto cerca de 650 depois de Salomão. Como tão bem coloca Dockery:
Um obscuro compositor judeu, trabalhando um milênio depois que esse tipo de poesia romântica foi produzido no Egito, não poderia ter escrito acidentalmente uma obra tão parecida com a poesia egípcia. Também não é razoável argumentar que ele conhecia e havia imitado de maneira deliberada uma forma de arte antiga, estrangeira e provavelmente esquecida naquela época. (2001, p. 412).
Alguns críticos têm levantado a hipótese de que o autor seja do Reino do Norte, durante o período inicial do reino divido, tendo como base o fato de que a narrativa coloca Tirça (Tirtzáh) capital do Reino do Norte, no mesmo nível de Jerusalém, capital do Reino do Sul e levando em conta os diversos pontos de referências nortistas cheias de lugares pitorescos que proporciona o contexto idílico do poema. O fato de que o Norte tinha diversas fronteiras os tornavam mais propensos à influência dos povos vizinhos, tanto na cultura quanto na linguística.
            Nessas últimas décadas tem florescido a ideia de que o poema tenha sido escrito por uma mulher. Uma das razões citadas está no fato de que em nenhum momento se faz referência à figura do progenitor (pai) da personagem central, mas todas as referências são à progenitora (mãe) dela, o que contrasta fortemente com o período patriarcal da época e acentuadamente israelita/judaica (PERRIER, 1970-1971, p. 143-144, apud CAVALCANTI, 2005, p. 25).
            O fato de que os judeus o colocaram no conjunto canônico de literatura religiosa,[4] tendo como referência a autoria salomônica, se constitui em forte argumento de sua autenticidade e corroborado por amplo testemunho histórico.[5] De maneira que se torna natural aceitarmos que o livro foi escrito neste período salomônico.

Data
Partindo de uma análise literária, o poema foi escrito em um hebraico maduro, ainda que haja diversas palavras estrangeiras, conforme acima mencionadas. A maioria das referências e alusões no Cântico conduz à autoria indicada no primeiro verso – Salomão.
Diversos estudiosos judeus optam pela autoria do rei Ezequias, de Judá (HILL e WALTON, 2006, p. 411), uma vez que ele é o grande guardião da literatura de sabedoria israelita (Pv 25.1; cf 2Cr 32.27-29). Há também os que advogam uma data tardia, séc. III, todavia, esbarram no fato de que não daria tempo do livro ser incluído na versão grega da Septuaginta, no final daquele século.
Desta forma, sendo a obra um panegírico composto em homenagem ao rei por alguém ligado ao círculo salomônico e o escritor sendo da região norte, explicam-se mais facilmente as peculiaridades do vocabulário e fraseologia, conforme referida acima. Portanto, as indicações acima nos conduzem a fixarmos o tempo da composição no período do reinado de Salomão no final do século X a.C.

Canonicidade
            Como mencionado acima o fato do livro de Cantares ter sido incluído no cânon veterotestamentário foi fundamental para que ele fosse não apenas preservado, mas aceito como inspirado. Todavia, não significa que foi uma inclusão unanime e fácil. Houve inúmeras barreiras que precisaram ser transpostas até o famoso Conselho de Jâmnia ou Yavne, onde todas e quaisquer questionamentos em relação a permanência de Cantares entre a literatura canônica foi ratificada.
            Cantares está incluído na terceira parte da Bíblia Hebraica, denominado de Escritos (heb. Ketûbim), que no início do período cristão foi cunhado de “hagiógrafa” (escritos sagrados). Nos dias de Jesus já havia a tríplice divisão do cânon hebraico: Pentateuco (livros de Moisés), Profetas (incluindo os que denominamos históricos) e Salmos[6] e/ou Escritos.
            Dentro dos Escritos há uma subdivisão denominada de “Megilloth” ou “Rolos” que eram lidos durante as cinco grandes festas religiosas dos judeus, de maneira que Cântico dos Cânticos era lido durante a Festa da Páscoa, a maior e mais significativa festa do calendário judaico.
            As palavras do rabino Akiba (c. 100 d.C.) deixa bem claro a posição oficial dos judeus em relação ao livro de Cantares: “O mundo inteiro não é digno do dia em que Cântico dos Cânticos foi dado a Israel; todos os Escritos são santos, e Cântico dos Cânticos é o santo dos santos”. (LASOR, 1999, p. 558).

OS ESCRITOS E/OU HAGIÓGRAFOS
Terceira Parte do Cânon Hebraico
Livros Poéticos
Salmos “Livro dos Louvores”
Provérbios
Rolos (Lido nas Festas)
Cantares e/ou Cântico dos Cânticos (8º dia da festa da Páscoa)
Rute (Pentecostes e/ou festa das Colheitas)
Lamentações [de Jeremias] (Proclamação da Destruição de Jerusalém)
Eclesiastes (festa dos Tabernáculos)
Ester (festa do Purim)
História
Daniel
Esdras-Neemias
Crônicas (1 e 2)

          
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/



Próximo: Como Cantares Tem Sido Interpretado

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Referências Bibliográficas
CAVALCANTI, Geraldo Holanda. O cântico dos cânticos – um ensaio de intepretação através de suas traduções. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2005.
DOCKERY, David S. (Org.). Manual bíblico vida nova. [Tradução Lucy Yamakami, Hans Udo Fuchs, Robison Malkomes]. São Paulo: Vida Nova, 2001.
HILL, Andrew E. e WALTON, J. H. Panorama do Antigo Testamento. São Paulo, Editora Vida, 2006.
LASOR, William S., HUBBARD, David A. e BUSH Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999.
KEIL, C. F. e DELITZSCH, Franz. Commentary on the Old Testament - The Song of Solomon.  Massaschusetts: Hendrickson Publishers, 2006. [edition originally published by T. & T. Clark, Edinburgh, 1866-91.
ORR, R. W. Cântico dos Cânticos. In: BRUCCE, F. F. (org.) Comentário bíblico NVI – Antigo e Novo Testamento [tradução: Valdemar Kroker]. São Paulo: Editora Vida, 2008.
PERRIER, François. Lamour – séminaire 1970-1971. Paris, Hachette, 1998, pp.143-144.
REDFORD, R. A. e CAFFIN, B. C. Song of Salomon. [Serie: Pulpit Commentary]. London e New York: Funk & Wagnalls, 1913.
YOUNG, Edward J. Una introduccion al Antiguo Testamento. USA: Ed. TELL, 1977 [1ª versão espanhol].
GORDIS, Robert. The Song of Songs and Lamentations. New York, 1974.





[1] Depois do período da paz salomônica, somente no sec. IV a.C., com o advento do Império Medo-Persa que houve uma pacificação semelhante em toda terra de Israel, conhecida como a Pax Pérsica, de maneira que qualquer pessoa podia viajar por todo o país livremente, desde Em-Gedi até o Líbano (ORR, 2008, p. 974).
[2] A narrativa coloca Tirza e Jerusalém como cidades equivalentes (6.4), o que foi possível somente no reino unificado, pois após a divisão e nos dias de Onri (886-874 a.C.) Samaria assume o centro das atenções como nova capital do reino do norte. Deste modo, a indicação realça o fato de que o contexto histórico da narrativa se passa antes dos dias de Onri.
[3] O comércio entre o norte da índia e a Mesopotâmia estava bem estabelecido no terceiro milênio a.C, como certamente era com o Egito, de modo que na época de Salomão havia uma longa tradição de contatos comerciais com o Extremo Oriente. E Dockery (2001) destaca: “... só nessa época que Jerusalém possuía especiarias, perfumes e artigos de luxo mencionados no livro, assim como grandes quantidades de ouro, mármore e joias preciosas” (Ct 5.14-15; veja IRs 10.14-22).
[4] Apesar de estar no cânon do AT o livro de Cantares não é citada uma única vez em todo o NT.
[5] O livro indica ser de autoria de Salomão e Baba Bathra 15ª não contradisse esta opinião. (YOUNG, 1977, p. 355).
[6] Essa terceira parte era chamada assim, inclusive por Jesus, porque era o primeiro livro desta terceira parte da Bíblia Hebraica.

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