terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

OS LIVROS POÉTICOS E DE SABEDORIA - Canonicidade e Posição no Cânon Hebraico/Cristão

Os estudiosos agrupam e classificam Jó, Provérbios e Eclesiastes como a Literatura de Sabedoria do Velho Testamento. Falando tecnicamente, Salmos e Cânticos de Salomão não pertencem à Literatura de Sabedoria. Mas desde que eles contêm uma certa afinidade com eles, são às vezes incluídos. Por esta razão estes cinco livros são chamados às vezes de Livros Poéticos e/ou Literatura de Sabedoria do Antigo Testamento. 

Os Livros Poéticos e de Sabedoria e a Literatura Oriental Antiga
Evidentemente que a literatura poética bíblica não é única, mas os salmistas e sábios hebreus tinham conhecimento das formas literárias que geralmente eram usadas pelos povos e culturas antigas tais como Suméria,[1] Babilônia, Egito,[2] e em relação à poesia sapiencial dos cananeus e edomitas, pouco restou e somente de forma indireta pode-se identificar traços nos textos poéticos de sabedoria hebraicos.
Seria ingenuidade não admitir que os escritores bíblicos se utilizaram desses modelos literários e partindo deles produziram suas próprias e peculiares composições. Os israelitas estavam estabelecidos na encruzilhada comercial e cultural entre a Mesopotâmia e o Egito, portanto, foram tanto beneficiados quanto influenciados pelas correntes transculturais por essas civilizações mais antigas.
Todavia, ainda que esta relação da poética e sabedoria hebraica possa, e deva ser estuda à luz da literatura existente naquelas culturas orientais nos quais os israelitas estavam inseridos, uma análise e comparação mais perspicaz revelam uma clara e distintiva autonomia e autenticidade dos escritos bíblicos, conforme vemos abaixo na adaptação das excelentes considerações do Dr. Thomas L. Constable:
a)    O politeísmo das culturas Orientais Antigas nunca permitiu o alto nível conceitual-teológico expresso na poesia e literatura sapiencial bíblica. Nenhuma outra literatura subiu ao nível de uniformidade de fé e profundeza de pensamento que encontramos na poesia bíblica. Embora a poesia bíblica contenha uma diversidade vital, o seu monoteísmo penetra e permeia todos os seus conceitos e padrões morais básicos.
b)    As pressuposições e conclusões teológicas da poesia bíblica são muito diferentes e distintas da poesia e outras literaturas daqueles povos.
c)    A sabedoria contida nos livros bíblicos supera em muito a sabedoria encontrada em outras literaturas próximas. De acordo com 1 Reis 4.30-31, “Era a sabedoria de Salomão maior do que a de todos os do Oriente e do que toda a sabedoria dos egípcios. Era mais sábio do que todos os homens, mais sábio do que Etã, ezraíta, e do que Hemã, Calcol e Darda, filhos de Maol; e correu a sua fama por todas as nações em redor”.
Deste modo, podemos concluir que há um valor relativo em estudar estas outras literaturas para se alcançar um entendimento maior desta nossa literatura bíblica. E o aspecto mais relevante nesta distinção entre uma e outra produção literária é o fato de entendermos que livros que compõem o Antigo Testamento são divinamente revelados, de modo que, para nós o ponto de partida e de chegada é sempre a Palavra Revelada de Deus somente.
A literatura poética sapiencial hebraica ocupa um espaço entre o material litúrgico/cúltico e os mandamentos explícitos de Yahweh, ou seja, no que concerne à vida cotidiana, dos relacionamentos interpessoais, e em relação ao próprio individuo como ser ético. Mas certamente, o cerne desta literatura, e uma das razões para estarem incluídas no cânon bíblico, é que essa sabedoria é resultante do conhecimento e temor de Deus e a sua justiça.
Assim como a mensagem profética, a sabedoria é interpretada por Israel como uma revelação que indica com clareza qual é à vontade Deus. Tecnicamente poderíamos dizer que o profeta se dirige à comunidade como um todo, mas pode ser aplicada individualmente, enquanto o sábio dirige-se ao indivíduo, mas pode ser aplicada por toda a comunidade, de maneira que estes dois meios se completam na forma de Deus se comunicar com seu povo.
Um aspecto muito importante é o fato de que o sábio tem plena consciência de que a sabedoria, fruto da experiência humana, deve estar submissa à vontade expressa de Deus. O Salmo 119 é um manifesto aberto e franco da relevância da Torá como padrão de todo aquele que deseja andar pelo caminho da sabedoria – qualquer outro caminho é da loucura, ou seja, fora da Torá não há genuína sabedoria.
Na evolução histórica de Israel a sabedoria vai se amalgamando à mensagem profética, o que foi possível pelo fato de que ela sempre manteve um caráter religioso. Todos os aspectos naturais abordados pela literatura poética sapiencial israelita estão vinculados diretamente à sua fé e ao seu relacionamento com Deus.
Por fim, por compartilharem de um contexto cultural comum, o mundo da sabedoria, com os povos circunvizinhos, geográfica e/ou historicamente, a literatura sapiencial israelita, fecundada de seus conceitos teológicos, transpôs as barreiras étnicas nacionalistas, tornando possível compartilhar sua fé com esses outros povos.  

A Canonicidade dos Livros Poéticos e de Sabedoria
            Evidentemente que a literatura poética e de sabedoria hebraica não se restringe apenas ao que foi inserido e preservado no Cânon. O que temos é apenas um pequeno estrato de uma profícua e vasta literatura desenvolvida ao longo dos séculos. O critério mais relevante para que estes livros viessem a fazer parte do Cânon bíblico é o de inspiração. Abaixo, à guisa de introdução, menciono algumas referências que indicam que os escritores foram especialmente capacitados por Deus para comporem suas respectivas obras:
1) Davi é identificado como o autor de grande parte dos salmos bíblicos e testemunhou que escreveu por inspiração de Deus, “São estas as últimas palavras de Davi. Palavra de Davi, filho de Jessé, palavra do homem que foi exaltado, do ungido do Deus de Jacó, do maravilhoso salmista de Israel. O Espírito do SENHOR fala por meu intermédio, e a sua palavra está na minha língua”. (2 Samuel 23.1,2).
(a) isto é confirmado pelo NT em passagens onde é declarado que o Espírito Santo tem falado por meio de Davi (Marcos 12.36; Atos 1.16; 4.24,25; Hebreus 4.7).
(b) também é confirmado pelo NT em passagens onde Davi é chamado de profeta (Mateus 27.35, cf. Salmo 22.18; Atos 2.29,30, cf. Salmo 16.10)
 (2) Salomão que é a autoridade atrás dos livros de Provérbios, Cantares e provavelmente de Eclesiastes, é outro escritor que foi inspirado pelo Espírito Santo.
(a) Embora Salomão não seja chamado de profeta, há evidência de que ele tinha um dom. Deus lhe apareceu e falou em visão pelo menos duas vezes (1 Reis 3.5; 9.2; 11.9,11; cf. Num 12.6).
(b) há uma história judia apócrifa que descreve Salomão escrevendo o livro de Cantares com o entusiasmo da mocidade, Provérbios com a perspicácia da maturidade e Eclesiastes com a desilusão da velhice!
(3) Asafe que escreveu diversos salmos é chamado de vidente em 2 Crônicas 29.30, e um profeta em Mateus 13.35 (cf. Salmos 78.2).

Posição dos Livros Poéticos e Sabedoria no Cânon Hebraico/Cristão
            Esses livros foram colocados em nossas versões em português (inglês) seguindo a ordem da Septuaginta (LXX). Essa é uma sequência cronológica, seguindo uma ordem natural, uma vez que Jó tem seu contexto na era patriarcal, em seguida temos os salmos associados a Davi, seguido pela literatura produzida por seu filho e sucessor no trono israelita, Salomão (Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos Cânticos). Na bíblia hebraica esses livros foram colocados na terceira e última parte, seguindo uma ordem teológica e abrindo com os Salmos que ilustram de forma prática a obediência à Torá.
 
No Cânon Hebraico[3] estes cinco livros (Jó a Cantares) foram originalmente colocados na sua 3ª e última divisão denominada os “Escritos”.[4]
§  Esta divisão incluiu também os livros de Rute, Lamentações, Ester, Daniel, Esdras, Neemias e 1 e 2 Crônicas (13 livros ao todo).
§  O 1º livro nesta divisão era o livro de Salmos (Jó era originalmente o 3º), por isto a divisão inteira às vezes era chamada “Salmos” (Lucas 24.44).

Na Septuaginta o nome grego para esta divisão era Hagiógrafo (Escritas Sagradas).
§  Foi colocado depois dos Livros Históricos e antes dos Profetas.
§  A ordem era. Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cânticos dos Cânticos e Jó.

A Vulgata Latina moveu Jó, colocando-o no início ao invés do fim, estabelecendo a ordem que as versões inglesas e portuguesas vieram adotar (Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, e Cânticos dos Cânticos).
§  Esta ordem evidentemente foi estabelecida sob considerações cronológicas, visto que Jó foi escrito mais cedo que Salmos.
§  A nossa Bíblia em português os classificam de “Livros Poéticos”.
§  Isto se relaciona obviamente à natureza poética dos seus conteúdos, embora Eclesiastes seja escrito dentro de “um estilo prosaico elevado que só às vezes tem um padrão métrico” (BULLOCK , 1988, p.43).
§  Embora Lamentações também seja poético foi colocado junto com Jeremias porque está relacionado ao escrito dele.

É importante destacar ainda o arranjo efetuado pelos Massoretas que colocaram Jó, Provérbios e Salmos juntos.
§  Porque elaboraram um sistema especial de acentuação poética a estes três livros.
§  Os denominaram de “O Livro da Verdade” porque a primeira letra de cada um destes livros forma a palavra “תמא - emeth” (verdade).
§  Os Massoretas pegaram os outros dois livros (Eclesiastes e Cântico de Salomão) e os incluíram com Rute, Lamentações e Ester formando assim um subgrupo especial dos Escritos.
§  Os quais chamaram de Megilloth (Rolos).

Para um propósito litúrgico, cada um destes livros era lido durante uma importante Festa religiosa judaica, prática que continua até hoje nas Sinagogas.
§  Cântico dos Cânticos – lido no oitavo dia da Páscoa
§  Rute – lido no segundo dia das Semanas ou Pentecostes
§  Lamentações – lido no nono dia de abe, jejum, relembrando a destruição de ambos os Templos.
§  Eclesiastes – lido no terceiro dia da Festa dos Tabernáculos.
§  Ester - lido na Festa de Purim.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


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Referências Bibliográficas
ARNOLD, Bill T. e BEYER, Bryan E. Descobrindo o Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2001.
BULLOCK, C. Hassell.  An Introduction to the Old Testament Poetic Books. Chicago. Moody Press, 1988.
CONSTABLE, Thomas L. Expository Notes on Psalms. Disponível em:             http://www.soniclight.com/constablc/notcs.htm Acesso em: 30/01/2016.   
LASOR, William S., Hubbard David A. e Bush, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999.
MONLOUBOU, L. Os salmos e os outros escritos. Tradução Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 1996. [Biblioteca de ciências bíblicas].
SCHREINER, Josef. Palavra e mensagem do Antigo Testamento. Tradução Benôni Lemos. 2ª ed. São Paulo: Editora Teológica, 2004.


[1][1] “Na Mesopotâmia encontramos copilações suméricas de provérbios, provenientes do antigo período babilônico, as quais muitas vezes foram traduzidas e transmitidas em duas línguas e gozavam da reputação de canônicas” (SCHREINER, 2004, p. 336).
[2] “A literatura sapiencial egípcia, embora abranja um período muito extenso, do império antigo até a decadência (de 2800 a 100 a.C.), conservou-se bastante coerente” (SCHREINER, 2004, p. 335).
[3] A ordem dos livros da Bíblia não leva a autoridade de inspiração. Inspiração Divina só se aplica ao conteúdo deles.
[4] A Bíblia Hebraica tem 3 divisões. Lei (Torá), Profetas (Nebiy'im) e os Escritos (Kethubim). As palavras de Jesus (Lc 24.44) destacam que em seus dias havia uma tríplice divisão do Canon. “... importava se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos”. É possível que o termo “Salmos”, engloba também os demais livros que compõe os “Escritos”, assim como “Lei” se refere aos cinco livros do Pentateuco ou até mesmo ao todo do Velho Testamento.   

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