sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Primeiro Testamento: Literatura Histórica 1º Samuel – A Oração de Ana (1.9-11)

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Um cântico evangélico que se tornou muito popular um tempo atrás inicia com a seguinte frase: “Há momentos que, na vida, pensamos em olhar atrás / É preciso pedir ajuda para poder continuar...”. As doenças psicossomáticas tornaram-se verdadeira epidemia no século XXI e as indústrias farmacêuticas lucram bilhões vendendo remédios paliativos que transformam milhões de pessoas viciados dependentes desta medicação tudo isso com a complacência dos médicos que os receitam.
Uma exposição pessoal exponencial nas mídias tem alimentado o narcisismo das pessoas, mas os efeitos colaterais podem ser visto no número de suicídios que tem aumentado assustadoramente neste século cibernético em virtude da desilusão e do vazio que estas pessoas sentem mesmo tendo milhares de “amigos” no facebook e milhares de seguidores no instagram.
Para aqueles que acusam as narrativas bíblicas de ser misoginia (do grego μισέω, transl. miseó, "ódio"; e γυνὴ, gyné, "mulher") ou “androcentrista” este capítulo inicial de Primeiro Samuel realça o valor e relevância perene da mulher no projeto de Deus. Ambas as histórias, da moabita Rute que antecede a história mais curta de Ana, revelam o quanto a mulher é protagonista na realização da História divina. Deus criou a mulher à sua imagem semelhança porque sabia que sem elas não haveria História.
Ana foi uma mulher que viveu em um período de transição da história israelita, quando mudanças profundas e significativas aconteceriam – será estabelecido o governo monárquico. Ela tinha um marido que a amava muito, mas não podia gerar filhos e na cultura israelita que ela estava inserida a esterilidade era considerada como um castigo divino. Deus havia prometido abençoar Seu povo com muitos descendentes se eles obedecessem a Ele ( Dt 28.11 ), consequentemente, muitos israelitas viram a incapacidade de uma mulher de ter filhos não apenas como uma questão natural, mas também como uma maldição de Deus.
Para complicar seu marido tomou uma segunda esposa (permitido pela cultura), mas em completa desarmonia com projeto original de Deus. Penina a segunda esposa gerou filhos e isso ampliou o sofrimento e humilhação de Ana. Essa situação durou por anos e a cada ocasião festiva Penina fazia questão de expor publicamente a situação humilhante de Ana, ainda que seu marido nessas ocasiões lhe desse uma porção dobrada para ofertar, demonstrando desta forma publicamente seu amor especial por ela.
Em uma dessas ocasiões religiosa festiva toda a família sai de sua residência em Rama e se dirigem até a cidade de Silo onde se celebrava a Deus e ali a família oferecia suas ofertas e sacrifícios conforme a Lei mosaica. Mas o coração e a alma de Ana contrastavam com todo aquele ambiente festivo. Vendo os filhos de Penina e as demais crianças brincando, cantando e correndo por todos os lados, contristava ainda mais seu coração e durante uma das refeições Ana optou por solitariamente se refugiar no santuário e ali derramar todas suas ansiedades e tristezas declarando sem qualquer subterfúgio toda sua insuficiência diante de Deus (Jó 3016; Sl 62.8; Sl 142.2, Lm 2.19; Tg 5.16).
Ela ora muito baixo (com o coração), pois quem deveria ouvir sua oração era o seu Deus, mas o idoso sacerdote Eli esta ali observando a jovem mulher balbuciando palavras e conclui equivocadamente que ela havia ingerido bebida fermentada (vinho) logo no primeiro período do dia e se aproxima exortando-a com firmeza, mas Ana explica sua situação ao ancião que se compadece dela e torna-se solidário com sua triste situação e abençoa sua vida dizendo que Deus haveria de ouvir aquela oração dela e quando ali retornasse o faria com uma criança em seus braços. Uma narrativa que iniciara tão tensa e triste, agora se transforma em motivo de louvor e gratidão. Um tempo na presença de Deus vale mais do que milhões em conta bancária. Buscar a presença de Deus é muito melhor do que buscar a compreensão das pessoas.
            Vejamos o conteúdo da oração de Ana, pois ela se constitui em um bom modelo de como podemos e devemos nos dirigir a Deus quando o nosso coração e a nossa alma estão dilacerados pela dor e frustração e precisamos pedir ajuda para poder continuar.
 1 Samuel 1.9-18
A oração de Ana é simples e objetiva, ela deseja um filho e sabe que somente Deus é capaz de atender seu pedido, pois seu marido por mais que a ame não tem como ajuda-la. Enquanto não nos esvaziamos de nós mesmos não somos capazes de orar corretamente. Tão somente quando esgotamos todos os nossos recursos e tomamos consciência de nossa completa insuficiência, haveremos de orar da forma correta.
A jovem mulher não dissimula seus sentimentos - estava sentindo uma profunda angústia e chorava amargamente, enquanto fazia sua oração ao Senhor. Uma oração que não envolva a alma e o coração torna-se uma sucessão de frases bem elaboradas, mas destituída de vida. A genuína espiritualidade jamais está desassociada de sentimentos igualmente genuínos. Os orientais sabiam muito bem extravasar sua dor e sofrimento – Jacó quando recebe a “fake news” de que seu amado filho José havia morrido, rasga suas vestes, cobre-se de saco e cinza e chora dias afio sem querer receber consolo.
Ana não esconde sua dor, sofrimento e humilhação pelo fato de não poder gerar um filho e entre angustia e lágrimas ela faz sua oração. Ninguém é capaz de entender completamente nossa situação do que o Deus que sonda mente e corações e que conhece nossos dias antes mesmo de nascermos. Assim como Jó não compreendia a razão e os motivos pelos quais ele e sua família passavam por tão grande aflição, apesar de seu cuidado em fazer continua oferta diante do Senhor, Ana também não conseguia entender por que ela não podia gerar um filho mesmo sendo saudável e temente a Deus.
Ela tinha diante de si duas alternativas: se deixar consumir completamente pela dor e frustração ou se derramar diante de Deus em uma completa submissão à sua vontade. A primeira alternativa certamente a consumiria até a morte, mas ao optar pela segunda Ana abriu a porta da fé e esperança no “Senhor dos Exércitos”. Este nome passou a expressar os infinitos recursos e poder à disposição de Deus, enquanto Ele luta por Seu povo. Portanto, a oração dela é dirigida ao Deus eterno que trouxe à existência tanto os céus como a terra; Ele é o Deus que transforma o caos em algo maravilhosamente bom; Àquele que detêm todo o poder nos céus e na terra; aquele que vence os inimigos mais implacáveis; assim, Ana sabe que sua única esperança é recorrer ao seu Deus!
O voto que Ana inclui em sua oração é extremamente significativo, mas precisa ser entendido corretamente, pois ela não o faz em espírito de barganha ou qualquer forma de pressionar Deus a atender sua oração. Há duas expressões na sua oração que deixa sua submissão evidenciada - "Ó Senhor dos Exércitos, se tu deres atenção à humilhação de tua serva, [se] te lembrares de mim e não te [se] esqueceres de tua serva, mas lhe deres um filho, então eu o dedicarei ao Senhor por todos os dias de sua vida, e o seu cabelo e a sua barba nunca serão cortados" (1.11). Esse triplo “se” (אִם) não denota qualquer dúvida ou exigência, mas reforça a certeza e confiança dela no cuidado de Deus que tem seus olhos fixos nela e por isso intervirá positivamente na sua história. Essa pequena partícula faz toda a diferença, pois ela se coloca à mercê da vontade e propósito de Deus, sem deixar de expressar abertamente seu desejo da maternidade. E como expressão de sua gratidão ela oferece essa criança ao Senhor. Outra repetição tripla que reforça o aspecto humilde de sua oração é a expressão “tua serva” que exprime a profunda submissão e resignação com as quais ela faz sua petição ao Senhor.
É provável que ela tinha conhecimento da história dos pais de Sansão (Jz 13.2-5) de quando um anjo apareceu-lhes e declarou que a esposa estéril (como ela) seria mãe, mas que o menino deveria ser nazireu desde seu nascimento. Assim, ao declarar a Deus que em sendo atendida em sua oração e gerando um filho homem o consagraria integralmente ao Senhor através do voto de nazireu, Ana está deixando claro que deseja um filho não apenas para sua autossatisfação e nem para cessar as humilhações provocadas por Penina, mas antes de qualquer outra coisa, ela deseja um filho para glorificar a Deus! Ana vai além dos pais de Sansão, pois ela oferece antecipadamente o filho que ainda não têm, mas que acalenta ardentemente conceber por tantos anos desde o dia em que havia se casado, cheia de planos e sonhos, que dolorosamente ainda não se haviam concretizados. Ana quer um filho, mas ao mesmo tempo, está pronta para devolvê-lo integralmente ao Senhor.
É muito interessante percebermos uma significativa mudança de perspectiva da narrativa: na primeira cena o problema da esterilidade é uma questão de conflito familiar (1.3-8); nesta segunda cena (1.9-18) o problema é de ordem de necessidade, submissão e confiança nos recursos e vontade de Deus. A oração na bíblia jamais foi um instrumento de barganha ou coação, mas de submissão, pois o propósito maior dela é nos capacitar para fazermos a vontade de Deus e jamais pressiona-Lo a fazer a nossa (Mt 6.9-10) e quando oramos corretamente Deus mesmo faz sossegar nossa alma e nos esvazia de toda ansiedade doentia (Fp 4.6-7).
É verdade que naqueles dias os primogênitos descendentes da tribo de Levi ao completarem vinte e cinco anos de idade deveriam se apresentar para o serviço sacerdotal e ficavam disponíveis até os cinquenta anos. Mas a consagração de nazireu[1] (hebraico nazir, derivada de nazar, «separar», «consagrar», «abster-se»).  O voto de nazireu podia ser efetuado pelos pais ou pela própria pessoa; podia ser por um período especifico ou por um período indefinido e no caso de Sansão e Samuel (posteriormente de João Batista) a iniciativa foram dos pais e por tempo indeterminado – os três o mantiveram até a morte. Fosse por tempo definido ou indefinido a consagração deveria ser plena, incluindo uma vida cotidiana diferenciada dos demais como não tomar bebida fermentada, não tocar em mortos, não cortar os cabelos (cf. história de Sansão), características que não continham em si qualquer implicação sobrenatural ou mística, mas servia apenas para distingui-los dos demais jovens ou pessoas.
Enquanto Ana esta completamente absorvida em sua oração o sacerdote Eli (que será sucedido posteriormente pelo próprio Samuel) a esta observando e interpreta equivocadamente que ela estivesse sob o efeito do vinho e chama-lhe atenção. Mas Ana respeitosamente conta sua história e a razão pela qual esta se derramando diante do Senhor “Por favor, senhor! respondeu ela, não estou embriagada! Estou muito triste, isso sim, e estava abrindo meu coração diante do Senhor. Por favor, não pense que sou apenas uma mulher embriagada [sem valor]! Oro assim por sofrer grande preocupação e aflição", assim como o voto que fez de consagrar seu filho integralmente como nazireu desde o nascimento. O ancião se compadece da jovem mulher estéril, pois sabia muito bem a pressão familiar e social que ela estava vivenciando ao longo daqueles anos todos e agora Eli certamente orientado pelo Espírito Santo pronuncia uma bênção sobre a vida dela – vá em paz – a palavra “paz” (shalom) trás a ideia de “prosperidade/sucesso naquilo que desejas” e complementa – “e que o Deus de Israel lhe conceda o que você pediu” - de maneira que o ancião expressa a concordância de que a oração de Ana seja atendida.
Ana a considerou as palavras do velho sacerdote Eli à luz de uma profecia que apontava para a realização de seu sincero desejo, de maneira que sua profunda tristeza se dissipa completamente e é substituída por uma esperança renovadora (1.18). Nem o experiente sacerdote e nem a piedosa Ana poderiam imaginar o que Deus haveria de fazer na vida e através da vida daquela criança a ser gerada, portanto, tudo que estará por acontecer é suficiente para tornar o nascimento desta criança um assunto adequado para a profecia.
E seu semblante já não era triste” – o tempo na presença de Deus transforma a vida e a narrativa destaca o notável contraste entre a Ana que, angustiada e sem apetite que buscou refugio e consolo na presença de Deus e a Ana que retorna ao convívio familiar. Ainda que naquele momento não houvesse nenhum sinal externo de que sua situação havia mudado em seu coração ela sabia que sua oração fora atendida. Ana se constitui em uma ilustração prática da natureza da genuína fé: “QUE É A FÉ? É a convicção segura de que alguma coisa que nós queremos vai acontecer. É a certeza de que o que nós esperamos está nos aguardando, ainda que o não possamos ver adiante de nós.” (Hb 11.1). Mas em meio às gerações de incrédulos que como Tomé necessita ver para crer, Ana é uma mulher bem aventurada, pois não vendo creu! Seu coração se alegrou porque creu! E como seu antepassado e modelo de fé Abraão, ela creu contra toda a esperança (Rm 4.18). Quando de fato e de verdade começarmos a crer, veremos acontecer transformações nas nossas vidas, bem como na vida desta Nação brasileira.
Uma leitura superficial pode nos induzir a pensar que o personagem central destas narrativas seja a pessoa de Ana, todavia, quando examinamos mais cuidadosamente constataremos que Deus é o personagem central destes acontecimentos e de seus futuros desdobramentos. Ana fez sua petição justamente por ser temente a Deus. O velho sacerdote Eli só pode dar a ela consolo e esperança por que falou em nome de Deus. A criança foi gerada e nasceu porque Deus atendeu a oração de Ana. Tudo depende de orar a Deus e ter resposta de Dele.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/

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[1] Maimônides, um sábio judeu sefardi (falecido em 1204), referiu-se à dignidade dos nazireus como equivalente à de um sumo sacerdote.

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