domingo, 3 de março de 2024

Galeria da Páscoa – Traição de Judas Iscariotes

            Certamente cada quadro desta Galeria dilacera o coração do crente! O quadro da traição tripla de Pedro nos impacta pela possibilidade de que poderia (e talvez esteja acontecendo) conosco.

            O quadro evangélico da traição de Judas Iscariotes não é menos chocante e igualmente deve nos levar a uma profunda reflexão pessoal – parafraseando o salmista ( ) temos que orar continuadamente – “sonda-me ó Deus e verifica se não estou traindo meu Senhor e Salvador Jesus Cristo”. Assim como o salmista não confie em sua própria sondagem superficial, é necessário uma sondagem tão profunda da alma que somente o Espírito Santo pode fazê-lo genuinamente.

Narrativa Marcana (14.10, 11; 43-50)

            Há um texto que ilustra adequadamente a situação de Judas Iscariotes, em relação ao seu ato de traição – “a quem muito é dado, muito será cobrado” (Lc 12.42-48). Iscariotes consta em todas as listas evangélicas dos doze discípulos, que foram pessoalmente separados por Jesus e que receberam ensinos específicos do próprio Senhor e posteriormente foram enviados na, podemos assim dizer, primeira missão evangelística por todo o território da palestina judaica. Ele igualmente retorna compartilhando com todos as coisas extraordinárias que realizaram em o nome de Jesus. Certamente Iscariotes poderá dizer, como tantos outros: “Senhor! Senhor! profetizei em teu nome, expulsei demônios em teu nome e realizei muitos milagres em teu nome?” (cf. Mt 7.22), entretanto, ouvira igualmente as palavras do Jesus Cristo ressurreto e glorioso: “Nunca te conheci; apartai de mim, tu que praticais a iniquidade” (Mt 7.23). Outro outdoor para os Iscariotes atuais.

            Marcos, assim como seus colegas evangelistas, gastam a maior parte de sua narrativa registrando a última semana de Jesus. Ele acompanha-o desde sua chegada em Betânia e suas indas e vindas da cidade de Jerusalém, mais especificamente seus embates no Templo – a menina dos olhos dos judaizantes. Na leitura, mesmo que simples, é notório o crescente ódio dos adversários que em nenhum momento conseguem encurralar Jesus com suas perguntas e questões falaciosas. Tentam o tempo todo criarem factoides, contratam até mesmo os especialistas da época os escribas, mas suas mentiras são desmascaradas ao vivo e a cores por Jesus, que os expõem cada vez mais ao ridículo diante da multidão que se aglomera ao redor de Jesus em cada passo, palavra e gesto que Ele faz. Por isso a razão de Jesus retornar a cada dia para Betânia, onde no aconchego do lar dos irmãos Lazaro, Marte e Maria, Ele pode descansar e refazer suas forças – prova categórica de sua integral humanidade!

            Na quarta feira Jesus é convidado para jantar na casa de um homem chamado Simão, que carregava a alcunha de “o leproso”. Evidente que ele havia sido curado e tudo indica que por Jesus. Desta forma, o jantar seria uma demonstração de gratidão e reconhecimento de Jesus. Enquanto está reclinado à mesa, pois ficava rente ao chão, uma mulher vem silenciosamente e quebrando um vidro de alabastro contendo um perfume caríssimo, começa a derramá-lo todo sobre Jesus Cristo. Os discípulos e Iscariotes em particular, ficam horrorizados com tamanho desperdício, conforme seus comentários. Jesus imediatamente os repreende e exalta o gesto amoroso daquela mulher e declara que ela está apenas antecipando a sua preparação para o túmulo – que está por vir a poucas horas.

            Está cena foi a gota de água que faz transbordar o copo da indignação de Iscariotes. Por quase três anos ele está aguardando que Jesus tome uma atitude e derrote de uma vez por todas os invasores romanos e restabeleça a glória de Israel, como nos dias de Davi/Salomão e eles finalmente reinarão em toda sua plenitude. Mas a cena que ele acaba de ver nada tem a ver com suas expectativas.

Desde que começaram a subir para Jerusalém Jesus reiteradamente fala de sua prisão e morte e ressurreição. Ele como Marta sabia que haveria uma ressurreição no último dia (futuro), mas ele não havia deixado tudo, incluindo família, para seguir a Jesus por uma esperança futura – ele quer receber seu prêmio aqui e agora. Mas o desperdício daquele perfume de nardo caríssimo e as palavras de Jesus defendendo a mulher e mais uma vez falando de sua morte eminente – desanimaram de vez o coração de Iscariotes. Se Jesus Cristo não vai tomar uma atitude, ele mesmo vai correr atrás de seus sonhos. Ele é que não vai sair no prejuízo; não vai voltar para casa com uma mão na frente e outra atrás.

Mc 14.10, 11 - E Judas Iscariotes, um dos doze, dirigiu-se aos principais sacerdotes, para traí-lo. Quando ouviram isso, ficaram encantados e prometeram dar-lhe dinheiro. Então Judas começou a procurar uma oportunidade para traí-lo.

Que contraste terrível – o gesto de amor completamente abnegado da mulher, e o ato vil de um dos próprios apóstolos. Fica evidente a completa frustração de Iscariotes com Jesus e sua mensagem do Reino de Deus – as moedas de prata pelo seu mestre. Quantos não tem seguido este mesmo terrível e trágico caminho de uma pseuda prosperidade neste mundo e desviando-se completamente do caminho da salvação e vida eterna. Escolhem as riquezas corruptíveis deste mundo tenebroso e renunciam às insondáveis riquezas perenes e eternas de Cristo Jesus. Judas representa os crentes hedonistas deste século.

Como foi deixado claro ele fez parte da elite dos apóstolos. O que ele viu e ouviu poucos tiveram o privilégio de compartilhar. Aqui cabe as palavras exortativas de Jesus àqueles que mesmo vendo e ouvindo não creram e por esta razão o juízo de Deus será ainda mais implacável com eles do que com os moradores de Sodoma e Gomorra. E tais palavras de Cristo continuam repercutindo no transpassar dos séculos, mas as pessoas continuam surdas e cegas para a realidade do Evangelho – preferem calar e até matar os pregadores do que se arrependerem e crerem para serem salvos.

Os demais discípulos e até mesmo nós podemos ficar chocados e horrorizados com a ação traidora de Iscariotes – menos Jesus – pois, ele havia dito com todas as letras:  "O Filho do Homem será entregue nas mãos dos homens...", e "o Filho do Homem será entregue aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas..." (Mc 9.31;10.33). Mas a escolha é totalmente de Iscariotes – ele decidiu/resolveu fazer sua ação. Entretanto, há alguém por trás desta atitude de Iscariotes – Durante a ceia, o diabo já havia colocado no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, para traí-lo” (João 13.2). No coração e mente em que o Espírito não age, age Satanás. E o Espírito Santo somente produz e reproduz em abundância o seu fruto naqueles que professam Jesus Cristo como Senhor e Salvador.

Nestas cenas de Iscariotes temos as duas realidades (não há uma terceira): o mal abundando (conduzindo Iscariotes para a morte) e a graça superabundante na preservação dos demais discípulos (mesmo na vida do Pedro que o nega e de Tomé que dúvida e dos demais que se afastam acovardados). Ó graça, quão maravilhosa graça de Jesus!!

            Os dias e horas vão passando rapidamente, chegamos na quinta-feira nossa, mas sexta-feira para os judeus que contam os dias a partir pôr do sol (próximo 18h). No transcorrer da refeição (janta) da Páscoa [conforme informa João 12.4-17] Jesus, para vergonha dos discípulos, levanta-se e cingindo-se de uma toalha e uma bacia com água, passa a lavar dos discípulos um a um. Como tão bem disse Daniel em sua oração – a eles e a nós só cabe o corar de vergonha.

            Completando o quadro covarde e vil temos as autoridades judaicas negociando a vida de um homem inocente. A religiosidade sem a graça de Deus torna-se perniciosa e maléfica. Como temos assistido diariamente ao vivo e a cores no Brasil destes últimos tempos.

            Eles ficaram tomados de êxtase ao ouvirem a disposição de Iscariotes em trair seu mestre – eles jamais imaginaram que teriam uma oportunidade dessas. As trinta moedas de prata era o preço reparador de um escravo que fosse ferido por um animal de outro dono (Zacarias 11.12), de maneira que para eles e Iscariotes Jesus Cristo valia o equivalente a um escravo. Hoje se barateia a graça de Deus por muito menos.

Uma vez fechado o acordo - Então ele [Iscariotes] começou a procurar uma oportunidade para traí-lo. A cena ainda por se completar revela toda a depravação da raça humana decaída. Como o apostolo Paulo temos que gritar – miserável pessoa que sou – pois, sem a graça salvadora as coisas boas e certas que sei que tenho que fazer, não faço, mas as coisas vis e tenebrosas que sei que não devo fazer, faço. Neste mundo temos apenas dois tipos de pessoas, os que foram alcançados pela graça salvadora – filho pródigo; Zaqueu, o cego Bartimeu e tantos outros; e aqueles que rejeitam até o fim a graça que emana da Cruz.

Primeiro foi a iniciativa de negociar seu mestre e senhor e agora uma nova iniciativa, uma ocasião propicia para entregá-lo a seus algozes e assassinos. Quantos hoje estão iniciativas tão ruins e trágicas como a de Iscariotes. A bíblia é muito clara e direta: “o resultado final do pecado é a morte”.

As horas se passam rapidamente. Estamos no início da sexta-feira judaica (18h) e os preparativos para a refeição estão prontas. Todos chegam e começam a se inclinarem em seus respectivos lugares. Jesus espera todos se acomodarem, então se levanta, cinge-se de uma toalha e uma bacia com água e se inclina sobre os pés de cada um deles, para lavá-los (função do escravo). O corar de vergonha deles só não é maior do que o nosso! O apostolo João abre uma janela no cenáculo (sala grande) para que possamos participar de cada movimento e palavra que Jesus disse àqueles homens, incluindo Iscariotes. Jesus conclui orando por eles. Durante a refeição Jesus havia deixado claro a Iscariotes que sabia de suas intenções – Jesus podia ouvir o tilintar das 30 moedas que Iscariotes carrega em sua bolsa pessoal e então lhe diz claramente – o que você tem que fazer faça-o sem demora...corra...não se detenha mais... Jesus não está preocupado com as ações traidoras de Iscariotes, mas com o relógio do Pai que demarca que está na Sua hora...

            Iscariotes já está a caminho, quando Jesus se levanta e junto com os damais cantam um hino (Salmo) e saem em direção ao jardim do Getsêmani, lugar preferido de Jesus para orar ao Pai sem perturbação ou barulhos. Ali chegando deixa os discípulos orando (mas vai encontrá-los sempre dormindo). Sua oração é resumida na frase extraordinária – Pai se for possível passe de mim este momento terrível da cruz, entretanto, seja feito a Tua vontade e não a minha.

               Então depois de três tempos de oração Jesus ouvem ao longe o barulho de movimentos, era Judas e guardas-seguranças do Templo e uma pequena turba, armados com espadas e porretes, vindo apressadamente para que Jesus não fugisse do jardim. E a nota terrível: a mando dos líderes religiosos judaicos. Tudo foi calculado e premeditado. Eles querem matar Jesus. Jesus levanta-se, acorda seus discípulos e resoluto lhes diz com toda calma e firmeza: chegou a minha hora...o traidor se aproxima...

Marcos 14.44 O traidor, Judas, tinha-lhes dado um sinal pré-combinado: "Sabereis qual prender quando o cumprimentar com um beijo. Então você pode levá-lo sob guarda."

            Iscariotes havia combinado um sinal astuto e sutil (bem ao estilo de uma serpente) para identificar Jesus (lembrando que ainda é noite escura) – aquele que beijar é este que devem prender...e levá-lo rapidamente... De fato, Iscariotes agiu semelhante àquela velha serpente em outro jardim...Éden. O velho Adão caiu, mas o novo Adão permanecerá em pé.

            O beijo no rosto demarcava uma afeição especial, familiar. Ao trair Jesus com este sinal Iscariotes revela a dimensão desprezível de sua hipocrisia e traição. O próprio traidor é que dá a ordem e orientação da captura...prendei-o e o levai rápido para que não fuja; mas em nenhum momento Jesus resistira e ainda corrige a atitude imprudente de Pedro. Os algozes e o traidor pensam que estão no controle da situação, mas Jesus sabe que o Pai está conduzindo tudo para a realização da Sua vontade soberana...Jesus declarou varias vezes...foi para isso que eu vim. Ninguém toma a minha vida, pois eu mesmo a dou deliberadamente.

            Jesus é o Cordeiro de Deus, conforme descrito pelo profeta Isaías 700 anos antes. Em nenhum momento Jesus se defendera. Mesmo em meio às mais cruéis torturas e violência ... mesmo diante das mais escancaradas mentiras forjadas pelas autoridades judaicas...Ele não abriu a sua boca.

            Esta é a última vez que Marcos registra a participação de Iscariotes, mas os evangelistas Mateus ( ) e Lucas ( ) nos informam que o resultado final dele foi o mais trágico possível – percebendo o tamanho da loucura que havia feito e não tendo como reparar todo mal que havia feito resolveu tirar a própria vida. Esse é o grande diferencial entre o remorso que corrói o interior do ser humano (Iscariotes) e o arrependimento que motiva a buscar a restauração (Pedro), no caso do remorso foi a morte, mas para todo arrependido a restauração e vida.

            Certamente este é um dos mais tristes e lamentáveis quadro da Galeria da Páscoa. Mas tudo isso foi registrado para que eu e você olhando para este quadro, possamos fazer uma profunda reflexão. Em que circunstâncias estamos vivendo? Com qual dos dois apóstolos nos identificamos? Façamos uma profunda reflexão, pois é um caso de vida ou morte!

 

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Historiologia Protestante


 

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Referências Bibliográficas

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