terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Calvino: Vocabulário Teológico – ADOÇÃO[1]

“Com que confiança alguém se dirigiria a Deus como ‘Pai’? Quem ousaria tamanha audácia de reivindicar para si a honra de ser filho de Deus, se não tivéssemos sido adotados como filhos pela graça em Cristo?” (Institutas, 3.20.36)

“Portanto, assim como Deus regenera apenas os eleitos com uma semente incorruptível para sempre — de modo que a semente de vida semeada em seus corações jamais pereça — assim também Ele sela firmemente neles o dom de Sua adoção, para que seja estável e seguro.” (Institutas, 3.2.11)

João Calvino, nas Institutas da Religião Cristã, apresenta a doutrina da adoção como uma expressão profunda da graça divina: um dom irrevogável que nos permite chamar Deus de “Pai” com plena confiança. Essa filiação não é apenas um status legal (justificação), mas uma realidade espiritual garantida pela regeneração operada pelo Espírito Santo e selada com sua presença constante.

A doutrina da adoção cristã ocupa lugar central no pensamento bíblico teológico de Calvino. Para ele, ninguém ousaria chamar Deus de “Pai” por iniciativa própria. Tal liberdade só é possível porque, em Cristo, fomos feitos filhos pela graça soberana. A adoção é um dom divino, não uma presunção humana. O Espírito Santo, ao efetivar em nós a regeneração, sela essa filiação de modo firme e irrevogável, de maneira que o novo nascimento e a adoção constituem realidades permanentes na vida dos eleitos. Uma vez adotados, somos filhos de Deus para sempre. Isso não significa que não pecaremos mais, pois ainda carregamos nossa natureza pecaminosa. É por essa razão que Davi pode ser chamado o “homem segundo o coração de Deus”, mesmo tendo um prontuário espiritual revelador de seus muitos pecados, porém nada diferente dos nossos.

Ao refletir sobre essa verdade, Sinclair B. Ferguson segue exatamente a trilha aberta por Calvino. Em sua teologia da adoção, Ferguson não descreve nossa relação com o Pai como um mero convite externo, mas como uma introdução real e eficaz à família de Deus. Não éramos apenas estrangeiros — estávamos mortos em nossos delitos e pecados. Portanto, não poderíamos responder a um simples convite; antes, Deus nos vivificou, nos uniu a Cristo e nos trouxe para dentro de Sua própria casa. O Espírito de adoção não apenas nos chama, mas testifica em nosso interior que pertencemos ao Pai, sustentando nossa identidade filial com segurança e esperança.

Encontramos uma maravilhosa ilustração desta verdade na parábola contada por Jesus de um filho pródigo, que se afasta voluntariamente do seu pai e desperdiça tudo que tinha. Então caindo em si o jovem - não volta para casa reivindicando direitos - ao contrário, retorna com a   perspectiva mínima de ser recebido, quando muito, como um mero empregado. Mas o pai corre ao seu encontro, cobre-o de graça e o reintegra como filho, devolvendo-lhe vestes, anel e sandálias — símbolos claros de filiação plena, não de uma posição servil. Aquele rapaz que se contentaria com um trabalho, recebe do pai filiação; ele que buscava apenas a sobrevivência; recebe a reconciliação. O cerne da parábola mostra que a adoção não é uma promoção moral, uma mudança de hábitos, mas uma decisão soberana do Pai que reintroduz o rebelde ingrato, no círculo do amor filial.

Portanto, há uma convergência de pensamento entre Calvino, Ferguson e o próprio Cristo:

·        adoção é resultante da eleição eterna em Cristo.

·        A regeneração é o meio pelo qual somos preparados para participar dessa filiação.

·        O Espírito Santo é o selo permanente que garante nossa pertença à família divina.

·        E a autêntica vida cristã, nos reconcilia e pacífica com Deus, é vivenciada a partir da certeza de que fomos inseridosreintegrados e estabelecidos como filhos - não como servos contratados - na casa do Pai.

De maneira que, a ousadia de podermos chamar Deus de Pai, não nasce da iniciativa ou esforço humano, mas da ação divina totalmente graciosa que nos insere plenamente à família celestial. Somos filhos não por mérito pessoal, mas pela graça que emana da cruz; não por esforço pessoal, mas pelo ato de adoção eterna do Pai, plenamente realizada pelo Filho e efetivamente aplicada pelo Espírito. Como o filho pródigo restaurado, não vivemos para conquistar um lugar na casa — vivemos porque já recebemos esse lugar, por pura e imutável misericórdia.

“Contemplem que amor tão extraordinário o Pai nos concedeu: fomos feitos dignos de ser chamados filhos de Deus — e não apenas chamados, mas realmente o somos” (1 João 3:1).

Não se trata de uma promessa futura, mas de uma realidade aqui e agora.


Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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