quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Miqueias: o Profeta da Justiça Versus a Ideologia da Equidistância

 

Introdução

Em tempos de silêncio institucional e neutralidade estratégica, a figura de Miqueias emerge como um profeta incômodo, cuja voz ecoa através dos séculos. Seu livro não é apenas uma coleção de oráculos aleatórios, mas apresenta um fio condutor de denúncia contra a injustiça, a corrupção e a religiosidade vazia, desconectada da vida real.

Quando aplicamos sua mensagem ao nosso tempo, percebemos que Miqueias não apenas confrontou os abusos de sua geração, mas sua mensagem continua a desafiar posturas de equidistância pragmática que se desenvolveram no protestantismo dos séculos XVII e XVIII e se cristalizaram no século XIX, especialmente nas denominações implantadas no Brasil e na América Latina pelo movimento missionário evangélico americano.

A voz do profeta nos chama a romper com o silêncio cúmplice e a viver a fé como prática de justiça, misericórdia e humildade.

Contexto Histórico de Miqueias e Sua Missão Profética

No primeiro parágrafo, ou verso, de seu livro, tomamos conhecimento de quem é o profeta, de onde ele vem e em qual período histórico exerceu sua missão profética. Ele mesmo se identifica como vindo de Moréset-Gate, uma vila rural na região da Sefelá (Judá). Essa informação não é apenas de caráter catalogal, mas possui implicações em suas mensagens, sobretudo no combate sistemático às injustiças sofridas pelo povo do campo, praticadas pelos mandatários dos poderes religiosos, políticos e econômicos, comodamente estabelecidos na abastada região da Judeia e de Jerusalém, então capital do país.

Para Miqueias e os demais profetas bíblicos, o combate às injustiças não é apenas sociopolítico, mas teológico: para Miqueias, a opressão contra o povo é uma violação direta da Aliança estabelecida por Deus (Mq 2:1-2; 3:9-11; 6:8). De maneira que, sua missão se desdobra em duas vertentes inseparáveis: de um lado, denunciar e confrontar as estruturas injustas e corruptas; de outro, conclamar o povo a retornar à fidelidade ao Senhor. Em Miqueias, juízo e chamado à conversão caminham juntos, revelando que a justiça social e a devoção espiritual são faces de uma mesma vocação profética.

Encontramos a manutenção desta dupla vertente nos ensinos de Jesus, tendo como ilustração o chamado Sermão do Monte, onde Jesus ensina que a genuina felicidade é usufruída apenas pelos que têm fome e sede de justiça (Mt 5:6) e, simultaneamente chama seus discípulos a uma fidelidade radical que vai além da aparência religiosa (Mt 6:1-6). Sem artifícios hermenêuticos podemos ver claramente como Jesus se harmoniza com a pregação de Miqueias, retomando sua denúncia contra a hipocrisia e mantendo o chamado à conversão. O Reino de Deus, anunciado por Cristo, exige tanto a prática da justiça quanto a devoção sincera. Em ambos, a fé autêntica se manifesta de forma concreta: justiça social e fidelidade espiritual não podem ser separadas sem que percam sua essência, pois constituem dimensões inseparáveis da vocação profética e da vida no Reino.

No primeiro verso, somos informados sobre o contexto histórico de Miqueias. Suas pregações abrangem um período longo, passando por pelo menos três reis de Judá — Jotão, Acaz e Ezequias (aprox. 750–687 a.C.).

·        Jotão (740–732 a.C.) - Apesar de certa estabilidade institucional, havia sinais crescentes e perceptíveis de rompimento com os preceitos da Aliança. Jotão não removeu os chamados lugares altos, fazendo vistas grossas enquanto o povo continuava a sacrificar e a queimar incenso aos ídolos. Como consequência, o processo de desigualdades sociais aumentou exponencialmente. Com esse comportamento ambíguo, Jotão manteve estabilidade política e religiosa, mas tolerou práticas contrárias aos princípios estabelecidos na Aliança. A neutralidade diante de injustiças e corrupções escancaradas pode até preservar, por um tempo, a ordem institucional, mas significa abrir mão da genuína vocação profética da Igreja.

·        Acaz (732-716 a.C.) - Foi, sem dúvida, um dos piores governantes de Judá. Seu reinado foi marcado por graves crises institucionais, culminando em alianças políticas desastrosas (não por falta de aviso dos profetas) e, finalmente, em sua vergonhosa submissão à Assíria. Para Miqueias não se tratava apenas a uma questão meramente política, mas teológica: Acaz comprometeu o culto ao Senhor, incluindo introduzindo práticas religiosas assírias no templo em Jerusalém, inclusive modificando o altar do templo em Jerusalém (2Rs 16:10-16). Este é um testemunho prático de que questões políticas podem promover consequências espirituais profundas.

·        Ezequias (716-687 a.C.) – A implementação de suas reformas religiosas deu sobrevida ao seu reinado, sobrevivendo às pressões e invasões do temíveis exércitos assírios. Contudo, ele não levou essas reformas até o fim, de modo que as tensões políticas e militares prosseguiram. O fim de seu reinado foi marcado por fragilidade política, debilidade religiosa e preparação para a futura invasão babilônica.

É nesse contexto belicoso de tensões e pressões, de instabilidade institucional e de aumento acentuado da pobreza e da miséria dos marginalizados e fragilizados que Miqueias se levanta para proclamar a mensagem recebida da parte de Deus. Sua pregação é dirigida tanto aos moradores de Samaria (capital do Reino do Norte) quanto aos moradores de Jerusalém (capital do Reino do Sul), mostrando que não se tratava de uma mensagem local ou setorizada, mas de alcance nacional.

Miqueias foi contemporâneo de Isaías, mas sua atuação se dava entre o povo do campo, enquanto Isaías atuava na cidade e nos palácios. A voz profética precisa se fazer ouvir em todos os lugares, sem quaisquer distinções políticas ou sociais. Pobres e ricos, poderosos e fragilizados, no campo ou na cidade, todos indistintamente devem ser confrontados com a mensagem profética que exige arrependimento e alinhamento aos preceitos estabelecidos na Aliança.
Quando, por quaisquer motivos, a mensagem não é proclamada, a falha não está na Mensagem, mas sim no mensageiro. Os resultados da proclamação não cabem ao mensageiro, mas a Deus, que o envia, pois a mensagem é Dele e não do pregador.

O profeta, contudo, não se apresenta como um fatalista cético. Ao lado das mensagens de juízo, ele anuncia também a restauração futura, revelando que a palavra profética não se limita à condenação, mas se abre à esperança.

Cenário social: concentração de terras, opressão dos pobres, corrupção dos líderes.

Cenário religioso: culto formal, mas desvinculado da ética e da justiça.

Missão profética: denunciar o pecado coletivo e anunciar o juízo divino, mas também apontar para a esperança messiânica.

Atuação Profética de Miqueias

Em momento algum Miqueias ameniza sua linguagem. Ele confronta diretamente os poderosos, os sacerdotes e os falsos profetas:

·       Usa imagens fortes: “arrancam a pele do meu povo” (Mq 3:2).

·       Expõe a hipocrisia religiosa: “O Senhor está conosco” (Mq 3:11), enquanto praticam injustiça.

• Faz uso de perguntas retóricas que confrontam a falsa segurança espiritual à qual seus ouvintes, por ilusão ou acomodação, estavam se entregando. Eles cantavam, oravam e pregavam: “O Senhor está conosco”, mas seu estilo de vida hedonista e mercantilista desmentia essa relação.

A mensagem de Miqueias expõe a condição espiritual deteriorada do povo — por ignorância ou comodismo — como uma ferida descuidada que se agrava, e oferece o remédio divino capaz de restaurar a comunhão: a obediência irrestrita aos termos da Aliança, claramente estabelecidos por Deus em Sua Palavra, que, como naqueles dias, haviam se perdido completamente da mente e do coração do povo. Quaisquer semelhanças com os dias atuais não são meras coincidências.

A voz profética versus a equidistância pragmática

Esse será o ponto de partida e de chegada destas análises e comentários das profecias de Miqueias. A equidistância pragmática — postura de neutralidade política e social adotada por setores evangélicos no Brasil, herdada de seus predecessores missionários americanos que aqui se estabeleceram a partir de meados do século XIX — contrasta radicalmente com o modelo de Miqueias. Abaixo, um sucinto demonstrativo:

• Miqueias denuncia o poder corrompido; a equidistância evita o confronto.
• Miqueias exige justiça; a equidistância foca na evangelização relativizando as questões sociais e políticas.

• Miqueias fala em nome de Deus; a equidistância muitas vezes se cala em nome da conveniência institucional.

Conclusão - Redescobrir a Voz Profética

Como igreja e como crentes-cidadãos, precisamos redescobrir o papel profético de Miqueias. Em tempos de desigualdade e corrupção latente, bem como de uma religiosidade estéril de obras de justiça, o silêncio não é neutralidade — é tão somente cumplicidade.

A voz profética de Miqueias nos convoca a romper com o pragmatismo e a viver a fé como prática de justiça, misericórdia e humildade (Mq 6:8).
Miqueias não foi um profeta de zona de conforto e manutenção do status quo. Sua mensagem incomodava os reis e sacerdotes de plantão e causava desconforto nos ouvidos da população hedonista. A voz profética autêntica não se acomoda às estruturas de poder, mas as desafia. É justamente por isso que a mensagem de Miqueias continua relevante hoje, como foi nos seus dias.

Entre a profecia que denuncia e a equidistância que cala, a escolha é inescapável: ou assumimos a voz de Deus, ou nos rendemos ao silêncio cúmplice.

 

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
ivanpgds@gmail.com
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(Obs.: Se estiver usando outra edição — Cultura Cristã, Fiel, etc. — posso ajustar.)
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No próximo artigo veremos como Miqueias inicia sua denúncia contra os poderosos em Jerusalém e Samaria, expondo a injustiça social e o silêncio pragmático da religião.

 

 

 

 

 

 

 

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