Introdução
Em tempos de silêncio institucional e neutralidade estratégica, a
figura de Miqueias emerge como um profeta incômodo, cuja voz ecoa através dos
séculos. Seu livro não é apenas uma coleção de oráculos aleatórios, mas
apresenta um fio condutor de denúncia contra a injustiça, a corrupção e a
religiosidade vazia, desconectada da vida real.
Quando aplicamos sua mensagem ao nosso tempo, percebemos que
Miqueias não apenas confrontou os abusos de sua geração, mas sua mensagem continua
a desafiar posturas de equidistância pragmática que se desenvolveram no
protestantismo dos séculos XVII e XVIII e se cristalizaram no século XIX,
especialmente nas denominações implantadas no Brasil e na América Latina pelo
movimento missionário evangélico americano.
A voz do profeta nos chama a romper com o silêncio cúmplice e a
viver a fé como prática de justiça, misericórdia e humildade.
Contexto Histórico de Miqueias e Sua Missão Profética
No primeiro parágrafo, ou verso, de seu livro, tomamos conhecimento
de quem é o profeta, de onde ele vem e em qual período histórico exerceu sua
missão profética. Ele mesmo se identifica como vindo de Moréset-Gate, uma vila
rural na região da Sefelá (Judá). Essa informação não é apenas de caráter
catalogal, mas possui implicações em suas mensagens, sobretudo no combate
sistemático às injustiças sofridas pelo povo do campo, praticadas pelos
mandatários dos poderes religiosos, políticos e econômicos, comodamente
estabelecidos na abastada região da Judeia e de Jerusalém, então capital do
país.
Para Miqueias e os demais profetas bíblicos, o combate às
injustiças não é apenas sociopolítico, mas teológico: para Miqueias, a opressão
contra o povo é uma violação direta da Aliança estabelecida por Deus (Mq 2:1-2;
3:9-11; 6:8). De maneira que, sua missão se desdobra em duas vertentes
inseparáveis: de um lado, denunciar e confrontar as estruturas injustas e
corruptas; de outro, conclamar o povo a retornar à fidelidade ao Senhor. Em
Miqueias, juízo e chamado à conversão caminham juntos, revelando que a justiça
social e a devoção espiritual são faces de uma mesma vocação profética.
Encontramos a manutenção desta dupla vertente nos ensinos de Jesus,
tendo como ilustração o chamado Sermão do Monte, onde Jesus ensina que a
genuina felicidade é usufruída apenas pelos que têm fome e sede de justiça (Mt
5:6) e, simultaneamente chama seus discípulos a uma fidelidade radical que vai
além da aparência religiosa (Mt 6:1-6). Sem artifícios hermenêuticos podemos
ver claramente como Jesus se harmoniza com a pregação de Miqueias, retomando
sua denúncia contra a hipocrisia e mantendo o chamado à conversão. O Reino de
Deus, anunciado por Cristo, exige tanto a prática da justiça quanto a devoção
sincera. Em ambos, a fé autêntica se manifesta de forma concreta: justiça
social e fidelidade espiritual não podem ser separadas sem que percam sua
essência, pois constituem dimensões inseparáveis da vocação profética e da vida
no Reino.
No primeiro verso, somos informados sobre o contexto histórico de
Miqueias. Suas pregações abrangem um período longo, passando por pelo menos
três reis de Judá — Jotão, Acaz e Ezequias (aprox. 750–687
a.C.).
·
Jotão
(740–732 a.C.) - Apesar de certa estabilidade
institucional, havia sinais crescentes e perceptíveis de rompimento com os
preceitos da Aliança. Jotão não removeu os chamados lugares altos, fazendo
vistas grossas enquanto o povo continuava a sacrificar e a queimar incenso aos
ídolos. Como consequência, o processo de desigualdades sociais aumentou
exponencialmente. Com esse comportamento ambíguo, Jotão manteve estabilidade
política e religiosa, mas tolerou práticas contrárias aos princípios
estabelecidos na Aliança. A neutralidade diante de injustiças e corrupções
escancaradas pode até preservar, por um tempo, a ordem institucional, mas
significa abrir mão da genuína vocação profética da Igreja.
·
Acaz
(732-716 a.C.) - Foi, sem dúvida, um dos piores
governantes de Judá. Seu reinado foi marcado por graves crises institucionais,
culminando em alianças políticas desastrosas (não por falta de aviso dos
profetas) e, finalmente, em sua vergonhosa submissão à Assíria. Para Miqueias
não se tratava apenas a uma questão meramente política, mas teológica: Acaz
comprometeu o culto ao Senhor, incluindo introduzindo práticas religiosas
assírias no templo em Jerusalém, inclusive modificando o altar do templo em
Jerusalém (2Rs 16:10-16). Este é um testemunho prático de que questões
políticas podem promover consequências espirituais profundas.
·
Ezequias
(716-687 a.C.) – A implementação de suas reformas
religiosas deu sobrevida ao seu reinado, sobrevivendo às pressões e invasões do
temíveis exércitos assírios. Contudo, ele não levou essas reformas até o fim,
de modo que as tensões políticas e militares prosseguiram. O fim de seu reinado
foi marcado por fragilidade política, debilidade religiosa e preparação para a
futura invasão babilônica.
É nesse contexto belicoso de tensões e pressões, de instabilidade
institucional e de aumento acentuado da pobreza e da miséria dos marginalizados
e fragilizados que Miqueias se levanta para proclamar a mensagem recebida da
parte de Deus. Sua pregação é dirigida tanto aos moradores de Samaria
(capital do Reino do Norte) quanto aos moradores de Jerusalém (capital
do Reino do Sul), mostrando que não se tratava de uma mensagem local ou
setorizada, mas de alcance nacional.
Miqueias foi contemporâneo de Isaías, mas sua atuação se dava entre
o povo do campo, enquanto Isaías atuava na cidade e nos palácios. A voz
profética precisa se fazer ouvir em todos os lugares, sem quaisquer distinções
políticas ou sociais. Pobres e ricos, poderosos e fragilizados, no campo ou na
cidade, todos indistintamente devem ser confrontados com a mensagem profética
que exige arrependimento e alinhamento aos preceitos estabelecidos na Aliança.
Quando, por quaisquer motivos, a mensagem não é proclamada, a falha não está na
Mensagem, mas sim no mensageiro. Os resultados da proclamação não cabem ao
mensageiro, mas a Deus, que o envia, pois a mensagem é Dele e não do pregador.
O profeta, contudo, não se apresenta como um fatalista cético. Ao
lado das mensagens de juízo, ele anuncia também a restauração futura, revelando
que a palavra profética não se limita à condenação, mas se abre à esperança.
Cenário social: concentração de terras,
opressão dos pobres, corrupção dos líderes.
Cenário religioso: culto formal, mas
desvinculado da ética e da justiça.
Missão profética: denunciar o pecado coletivo e
anunciar o juízo divino, mas também apontar para a esperança messiânica.
Atuação Profética de Miqueias
Em momento algum Miqueias ameniza sua linguagem. Ele confronta
diretamente os poderosos, os sacerdotes e os falsos profetas:
· Usa imagens fortes: “arrancam a pele do meu povo” (Mq 3:2).
· Expõe a hipocrisia religiosa: “O Senhor está conosco” (Mq
3:11), enquanto praticam injustiça.
• Faz uso de perguntas retóricas que confrontam a falsa segurança
espiritual à qual seus ouvintes, por ilusão ou acomodação, estavam se
entregando. Eles cantavam, oravam e pregavam: “O Senhor está conosco”,
mas seu estilo de vida hedonista e mercantilista desmentia essa relação.
A mensagem de Miqueias expõe a condição espiritual deteriorada do
povo — por ignorância ou comodismo — como uma ferida descuidada que se agrava,
e oferece o remédio divino capaz de restaurar a comunhão: a obediência
irrestrita aos termos da Aliança, claramente estabelecidos por Deus em Sua
Palavra, que, como naqueles dias, haviam se perdido completamente da mente e do
coração do povo. Quaisquer semelhanças com os dias atuais não são meras
coincidências.
A voz profética versus a equidistância pragmática
Esse será o ponto de partida e de chegada destas análises e
comentários das profecias de Miqueias. A equidistância pragmática — postura de
neutralidade política e social adotada por setores evangélicos no Brasil,
herdada de seus predecessores missionários americanos que aqui se estabeleceram
a partir de meados do século XIX — contrasta radicalmente com o modelo de
Miqueias. Abaixo, um sucinto demonstrativo:
• Miqueias denuncia o poder corrompido; a equidistância evita o
confronto.
• Miqueias exige justiça; a equidistância foca na evangelização relativizando
as questões sociais e políticas.
• Miqueias fala em nome de Deus; a equidistância muitas vezes se
cala em nome da conveniência institucional.
Conclusão - Redescobrir a Voz Profética
Como igreja e como crentes-cidadãos, precisamos redescobrir o papel
profético de Miqueias. Em tempos de desigualdade e corrupção latente, bem como
de uma religiosidade estéril de obras de justiça, o silêncio não é neutralidade
— é tão somente cumplicidade.
A voz profética de Miqueias nos convoca a romper com o pragmatismo
e a viver a fé como prática de justiça, misericórdia e humildade (Mq 6:8).
Miqueias não foi um profeta de zona de conforto e manutenção do status quo. Sua
mensagem incomodava os reis e sacerdotes de plantão e causava desconforto nos
ouvidos da população hedonista. A voz profética autêntica não se acomoda às
estruturas de poder, mas as desafia. É justamente por isso que a mensagem de
Miqueias continua relevante hoje, como foi nos seus dias.
Entre a profecia que denuncia e a equidistância que cala, a escolha
é inescapável: ou assumimos a voz de Deus, ou nos rendemos ao silêncio
cúmplice.

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