segunda-feira, 6 de abril de 2020

Rute, Jonas e Ester - o que tem em comum?



            A Bíblia contem lindas e tocantes histórias que ilustram o grande amor de Deus e a sua misericórdia que se renovam a cada amanhecer. Mas estas histórias não apenas relatam eventos, mas também é uma forma de estabelecer uma identidade comunitária. Nossas histórias não são apenas memórias passadas, mas elas também moldam e direcionam o nosso futuro.
            Como igreja cristã do século XXI nós estamos inseridos na grande História da Igreja Cristã, que por sua vez se vincula diretamente às histórias narrativas contidas na primeira parte das Escrituras - e na medida em que as contamos aos nossos filhos e as utilizamos em nossas liturgias dominicais elas interagem conosco de forma tão profunda que se tornam modeladores de nossas ações presentes, pois suas histórias tornam-se parte da nossa história.
            As pequenas e empolgantes histórias bíblicas de Rute, Jonas e Ester tocam profundamente crianças e adultos. É impossível lermos essas histórias e não abrirmos as portas de nossa imaginação e nos vermos em meio à grande tempestade que esta por afundar o navio em que Jonas tenta se esconder de Deus, mas que uma vez descoberto é arremessado ao mar violento e engolido por um grande peixe é posteriormente vomitado nas praias de Nínive, onde deveria ter se dirigido desde o começo; quem não sofre juntamente com Noemi e suas tragédias familiares e que é assistida e motivada por uma nora estrangeira que compartilha da mesma fé e juntas empreendem uma longa jornada de volta, onde novas, mas agora positivas experiências lhes aguardam e ao final a tristeza e amargura são transformadas em alegria e doçura e onde havia reinado a morte agora nasce na criança gerada por Rute a esperança que se perpetuara na linhagem davídica; por fim adentramos às intimidades e meandros do imponente palácio real onde uma jovem encantadora judia chamada Ester tem que aprender diariamente a sobreviver e arcar com a gigantesca responsabilidade de preservar todo o seu povo, que corre risco de extermínio.
            Mas qual é o elo que une estas três histórias? Apesar de terem contextos históricos temporais totalmente distintos elas compartilham de um mesmo gênero literário - o conto. Esse tipo de literatura se distingue de outras narrativas bíblicas como as grandes sagas ou Evangelhos por sua brevidade. Há outros contos inseridos dentro das grandes sagas, como por exemplo, a história de José ou ainda as histórias de Daniel e seus amigos.
            É preciso que coloquemos nossas comunidades em contato direto com essas histórias - que as pessoas toquem e sejam tocadas por elas. O poder de transformação e identificação com Rute, Jonas e Ester somente é liberado pelo contato direto com o texto que por sua vez promovera um aumento de fé, amor e esperança no coração do leitor crente.
VISÃO GERAL
RUTE
Uma História de Tragédia, Amizade e Esperança.
JONAS
Uma História de Arrependimento
ESTER
Uma História de Providência
Poucas histórias atraem e encantam os leitores como esse conto de Rute. Um dos maiores escritores alemães J. W. Von Goethe (1749-1832) descreve esta história como sendo um dos mais belos contos em toda a literatura épica e idílica.
A descrição singela e pitoresca da vida pastoril na pequena vila de Belém desperta todos os sentidos de seus leitores: as imagens e os sons da vida na aldeia, o cheiro do campo de cereais no meio da colheita, o sabor de pão fresco, o romance de um homem e uma mulher.
O poder dessa breve narrativa de fornecer modelos para a vida comunitária ainda hoje impressiona leitores acadêmicos e leigos. É possível encontrarmos na velha Noemi e na jovem Rute um paradigma de duas mulheres rompendo padrões e preconceitos em meio a uma sociedade predominantemente masculinizada.
Noemi tipifica aquele crente que apesar de todos os infortúnios da vida, da dor profunda da alma, ainda assim mantém sua fé; aqui temos todas as quatro estações do ano que forjam e demarcam as genuínas amizades;  aqui temos todos os ingredientes do drama da redenção, não apenas para Noemi, mas para todos aqueles que compartilham da mesma fé dela nas promessas perenes do Deus da Aliança.
Mas sem duvida alguma a jovem Rute nos arrebata e impacta não apenas pelas suas palavras, mas acima de tudo por suas ações – uma mulher determinada, que sabe o que quer e que não retrocede diante dos obstáculos e que como a própria Noemi declara – uma mulher que vale mais do que sete filhos.
Mas o grande adorno atrativo de Rute é seu contexto pastoril – aqui temos uma história sem vilão, um cotidiano sem maldades; todas as questões mais duras e angustiosas como fome e viuvez, encontram solução sem uso da força ou violência física. Aqui não há o glamour da literatura épica ou folclórica com suas batalhas e lutas do bem contra o mal.
Essa característica peculiar fica ainda mais evidenciada quando examinamos as histórias narradas nos dias dos Juízes onde se predominam as mais terríveis batalhas e violência -  o conflito mortal entre a juíza Débora e o príncipe cananeu Sísera (Jz 4-5); as mortes constantes nas intrigas de Sansão e os filisteus (Jz 14-16); e a vingança implacável do levita contra os homens de Gibeá (Jz 19-21).
Mas quando iniciamos a leitura de Rute somos transportados para um clima de serenidade na pequena vila de Belém.  A vida de Noemi é dura e difícil, mas as pessoas lhe são solidárias – Deus está no controle e as adversidades são transformadas em bênçãos (como na vida de José – Gn 50.20).
Ainda que a história se passe dentro de um mundo idílico de vizinhos solidários, charmoso proprietário de terras e festivais de colheitas, os leitores podem ver a realidade da vida, um mundo real. A dor de Noemi é real a ponto de mudar seu nome de doce para amargo (Rt 1.20); Boaz que é surpreendido pela situação de acordar com uma jovem mulher deitada a seus pés (Rt 3.8) e o permanente muro da identidade étnica de Rute, uma Moabita – povo inimigo dos israelitas (Dt 23.3). Rute é a anti-heroína, aclamada, porém nunca totalmente aceita (Rt 4.14-17).

A história de um profeta teimoso e suas desventuras tem atraído atenção de milhões de leitores desde quando começou a ser lido pelos israelitas e por todos os leitores da bíblia desde então.
A história de Jonas se identifica com a nossa na mesma proporção em que nos desviamos da vontade de Deus, mas que em decorrência da providência misericordiosa divina, temos a oportunidade de nos arrependermos.
 Todavia, apesar da popularidade dessa história os estudiosos tem se debatido continuamente sobre qual a interpretação mais apropriada e que justifique sua preservação entre o bloco dos Doze profetas.
Uma leitura superficial nos levar a pensar que Jonas é um mau exemplo a ser seguido, pois ele vai na contramão das virtudes que se espera de um profeta de Deus – é desobediente e teimoso.
Mas a igreja cristã primitiva não contemplava a história de Jonas pelo seu aspecto negativo. A partir do evangelista Mateus (12.40-41) Jonas torna-se um tipo de Cristo. O fato de que Jonas havia sido engolido por um grande peixe e “ressuscitado” depois de três dias, se constituiu em um modelo da morte e ressurreição de Jesus Cristo. Infelizmente nos estudos atuais poucos são aqueles que mantêm essa perspectiva cristológica.
Na verdade Jonas serve como contraponto à história de Jesus. O profeta é desobediente e Jesus obedece em tudo ao Pai (seja feito a tua vontade); Jonas foge do proposito de Deus e Jesus vai sempre em direção ao propósito do Pai (cruz); Jonas não conseguia entender a o interesse de Deus em salvar seus inimigos e Jesus morre por seus inimigos (perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem). Lutero o grande reformador alemão manteve a visão positiva de Jonas sem fazer concessões aos seus defeitos: é a história da longa paciência de Deus e a obstinada desobediência de Jonas, pois segundo Lutero “Deus permite que Seus filhos cometam erros até mesmo grosseiramente”, pois apesar de tudo Jonas é “filho querido de Deus” e ele “conversa desinibidamente com Deus”.
A história de Ester atrai e prende a atenção do leitor desde as primeiras linhas. Sua história se contrapõe completamente ao curso natural da vida. Ela vive em uma época em que a família era o único lugar de proteção e identidade e ela é órfã; na cultura em que esta inserida predomina a figura masculina e ela é uma mulher; ela vive em um país Persa e ela é uma judia; sua história, portanto, tinha tudo para ser um grande fracasso. Todavia, essa mulher, órfã e judia tornou-se um instrumento poderoso para salvar não apenas a si mesma e de seus familiares, mas de todo o povo judeu que vivia debaixo da autoridade Persa.
O rei Assuero se desgosta da rainha Vasti e acaba por nomear um comitê para encontrar uma mulher que pudesse substituí-la.
Sendo orientada por seu primo Mardoqueu e através da influência política do eunuco real Hegai, a jovem Ester torna-se uma dentre as candidatas que compareceriam diante do rei. Dentre todas as selecionadas o rei escolhe Ester como a nova rainha. Sua posição é delicada e frágil, sem posição política, econômica, religiosa e cultural cada palavra e atitude dela tem que ser muito bem calculada no meio da intriga da corte. Sua única esperança e proteção é a sua fé e dependência da providência de Yahweh, cujo nome nunca é mencionado explicitamente, mas se manifesta em toas as ações sobrenaturais descritas na história, se assemelhando com a história de Rute, onde Deus aparece como uma presença tranquila e de fundo, não intervindo ativamente no curso dos eventos, como encontramos em outras narrativas bíblicas como Êxodo e Josué.
Existe uma versão grega mais longa da história de Ester em que se incluem varias orações e menções diretas a Deus, mas não foi utilizada pelos judeus e também rejeitada pelos cristãos, de maneira que se preservou e utilizou-se a versão do Texto Massorético.
Enquanto compartilha as características narrativas comuns ao conto hebraico a narrativa de Ester é mais longa e mais complexa do que seus pares Rute e Jonas. Desta forma a história contém mais personagens decorrentes variedade de situações, o que acaba uma maior visibilidade dos personagens principais.
O ponto nevrálgico é a tensão entre Mardoqueu  (judeu) e Hamã (Persa), que em uma trama nos bastidores do poder consegue autorização real para aniquilar o povo judeu dentro dos domínios do império (3.9-11). Mas quando tudo parece contribuir para o sucesso dessa ação maligna a história tem uma reviravolta total, causada por uma noite de insônia do rei. Assim, Hamã que buscava a morte de seus inimigos judeus, morre na mesma forca que mandou construir para matar Mardoqueu  (7.10; 9.6-15).
As inversões de posição moldam os aspectos distintivos da história de Ester: Hamã vai do mais alto posto à forca; a rainha Vasti torna-se plebeia; a órfã e plebeia Ester torna-se rainha e Mardoqueu de inimigo nacional a herói do rei.
A figura de Ester sofre uma grande metamorfose no transcorrer da narrativa, pois de uma figura submissa ao sistema ela vai assumindo o controle de sua vida, tornando-se ativa em favor não apenas de si mesma (sobrevivência), mas também em favor dos outros (9.5, 13).
A história de Ester deu origem ao dia festivo chamado Purim, que vem do termo Pur (3.7; 9.26) que se refere ao dia em que se lançou sorte para estabelecer a data da aniquilação dos judeus, mas que terminou com a morte dos seus inimigos. O que a coloca em sincronia com os acontecimentos do Êxodo: “Este dia será um dia de lembrança para você. Você o celebrará como uma festa ao SENHOR: ao longo de suas gerações você o observará como uma ordenança perpetua ”(Ex 12.14).

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Outro Blog
Historiologia Protestante

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Referências Bibliograficas
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