Nesses dias em que o Brasil experimenta um evangelicalismo
utilitarista, materialista e hedonista, a mensagem dos profetas do Primeiro
Testamento permanece totalmente silenciada. Mas esse silêncio não é sem razão,
uma vez que a mensagem daqueles profetas condena abertamente a prática
religiosa da grande maioria do público evangélico e suas lideranças dos dias
atuais.
Os profetas cujas mensagens foram registradas nas páginas da primeira
parte da Bíblia cristã e que compõe a segunda divisão da Bíblia hebraica, nunca
foram personagens bem quistos pela maioria dos seus ouvintes, principalmente de
seus líderes políticos e religiosos. Suas mensagens normalmente miravam os
pontos nevrálgicos das castas politica e religiosa que ignorando as orientações
prescritas na Torá, que deveriam reger o comportamento do povo e seus líderes,
se utilizavam de suas funções para oprimirem os menos afortunados e se auto
beneficiarem de seus privilégios. Qualquer semelhança com a realidade presente
não é mera coincidência.
O Profeta
Um dos primeiros profetas, cujas mensagens passaram a ser registradas e
preservadas,[1] foi
o profeta Amós. Um
homem comum do campo,[2] comerciante
de gado e/ovelhas e de sicômoros[3] (Am
7.14), na pequena cidade de Tecoa,[4] mas
que na medida em que observa os desmandos dos poderosos e a crescente
exploração dos pobres; a utilização da religião para anestesiar a consciência
dos seus ouvintes em relação às exigências de justiça e direito; a manipulação
de Deus, tornando-o um mero entregador de bênçãos ou financiador de projetos
pessoais de cunho hedonistas; o sincretismo da fé fundamentada na Torá com toda
sorte de expressão de fé produzida às margens dela; diante deste quadro
caótico Amós é tomando por um espírito intrépido de zelo pela genuína religião
e de paixão pelos explorados e injustiçados. Amós tem duas alternativas:
cultivar uma indignação passiva e continuar cuidado somente de sua vida ou se
dispor a proclamar com ousadia e intrepidez aquilo que havia aprendido em seus
estudos da Torá que era a expressão da vontade de Deus para a vida da nação.
Amós não foi um místico milagreiro que surgiu misteriosamente e começou a
assombrar tudo e todos, mas foi um homem de seu tempo, que tinha lugar e
endereço, que exercia suas profissões para sustento dele e sua família. Mas
também era um homem que não se imiscuía das grandes questões sociais hodierna,
que se inquietava e procurava a raiz das causas geradoras de desigualdade e
opressão. Todavia, ele vai muito além, pois sua perspectiva extrapola as
conjecturas sociológicas e penetra nos aspectos teológicos, percebendo as ações
de Deus na história de seu povo e da própria humanidade. A sua fé e sua
mensagem não estavam fundamentada em um “deus” mórbido ou alienado, mas em um
Deus que desde sempre interagiu com a raça humana e desde a gêneses de sua
nação interatuou na história deles.
A Época
Na abertura de seu escrito temos a datação de sua atuação profética: “Palavras
que Amós, criador de ovelhas em Tecoa, recebeu em visões, a respeito de Israel,
dois anos antes do terremoto. Nesse tempo, Uzias era rei de Judá e Jeroboão,
filho de Jeoás, era rei de Israel”. É conhecido que Uzias reinou em Judá a
partir de 787/6 e viveu até 746 a.C. Mas o alvo primário da mensagem de Amós
foi Jeroboão II (Am 7.10-17), que reinou no período de 787/6 a 747/6
a.C., mais precisamente, conforme Nelson Kirst “é de se supor que Amós
tenha atuado antes do último decênio do rei Jeroboão II” (1981, p. 11 ).
Desta forma, a época mais provável para a atuação de Amós situa-se por volta
de 760 a.C. Corrobora esta data a informação de que pregou a
mensagem “dois anos antes do terremoto”, fato que, segundo algumas
descobertas arqueológicas, ocorreu por volta de 760 a.C. Partindo destas
premissas Amós inaugura a profecia literária do Primeiro Testamento, de modo
que ele é cronologicamente o primeiro dos profetas clássicos (CRABTREE, p.9.).
Este período histórico é o apogeu político-econômico do Reino do Norte (Israel),
mas também marca o princípio do fim trágico desta nação que não será
restaurada. Tendo alcançado uma estabilidade interna com a manutenção da
dinastia de Jeú,[5] a
subida ao trono de Jeroboão II, que permaneceu governando por quarenta e um
anos (2 Rs 14.23)[6] o
país, demarca o inicio de um ciclo virtual de prosperidade. Corrobora para isso
o fato de que as nações vizinhas, bem como alguns impérios adversários (Assíria
e Egito) estão fragilizados por questões internas ou envolvidos em outras
frentes de batalhas. A Síria havia sido conquistada pelos Assírios, que por sua
vez estava envolto em lutas internas e “... chegara ao ponto mais
baixo, de forma que não podia intervir em assuntos internacionais” (MERRILL,
2001, p. 397).
Jeroboão II era um bom estrategista e com várias vitórias bélicas expande a
fronteira norte de Israel até os limites alcançados nos dias de Salomão (2Rs
14.23-29). Domina a sempre rival Damasco e vence a Síria, inclusive
conquistando as regiões da Tansjordânia até Moab, passando a controlar as
fundamentais rotas comerciais tão almejadas pelos grandes Impérios. Estabelece
um forte comércio com os fenícios, que dominava o comercio marítimo daqueles
dias, passando a importa toda sorte de artigos de luxo para Israel. Os
arqueólogos encontraram vestígios dos esplêndidos edifícios, aumento do
agronegócio, expansão da indústria têxtil e de tinturaria, comprovando a
riqueza alcançada pela capital Samaria, bem como de diversas outras cidades,
criando uma forte classe rica e abastada disposta a toda sorte de ostentação
(SINCRE, 2011, pp. 112-113; BRIGHT, 2004, pp.267-269)[7] e
até suas camas “eram decorados com engastes de mármores, com representações
de lírios, veados, leões, esfinges e figuras humanas aladas. Foi um período de
vida ociosa, riqueza, arte e lassidão moral.” (Champlin, 2001, p. 3505)
O exército é equipado e ampliado,
bem como as fortificações nas fronteiras, produzindo uma sensação de segurança
e paz.
Mas tudo tem um preço! Um
fosso cada vez maior e mais profundo se abre entre os que tinham e os que nada
possuíam e até o pouco que conseguiam obter pela força de seu trabalho com suor
e lágrimas, lhes era arrancado por aqueles que já tinham em abundância.
Joroboão II repetia a fórmula utilizada por Salomão sobrecarregando a população
com toda sorte de tributos, sobre a mão de obra, produtos da terra ou impondo
jornadas de trabalho excessivas, a corveia,[8] pendendo
para os poderosos a frágil balança da equidade social. A massa de pobres e
desamparados cresce vertiginosamente e sem opção acabam criando vilas
miseráveis fora dos muros da cidade, onde ficavam privados de qualquer beneficio
e segurança.
O processo judicial estava totalmente corrompido. Os
que tinham a incumbência de aplicar as leis eram os anciãos, que por sua vez
eram ligados às famílias economicamente prosperas que detinham as terras
produtivas e formavam a classe aristocrática. Desta forma, todas as causas eram
sempre favoráveis às famílias e aos próprios juízes. Além de perderem tudo que
possuíam e ficarem totalmente desamparados os trabalhares e seus familiares
eram reduzidos à escravidão para saldarem suas dividas impagáveis.
Amalgamado com a classe política
e aristocrática estão os detentores do monopólio religioso, quer seja a classe
sacerdotal ou os profetas profissionais que viviam das benemerências do rei e
dos ricos. Os santuários estabelecidos em Betel ostentavam liturgias grandiosas
e opulentas, voltadas para agradar os poderosos, mas alienando os pobres e
desvalidos. As mensagens dos profetas profissionais eram instrumentos
ideológicos utilizados para legitimar o sistema de exploração, corrupção e injustiça
que predominava.
É neste
abominável contexto que se ouve a voz semelhante ao rugido do leão das estepes
do jovem profeta Amós. Ele não poupa ninguém, quer seja o rei, a corte, os
poderosos e os eclesiásticos. Desnuda todos eles das capas da hipocrisia
politica, social e religiosa mediante a realidade da vontade de Deus
estabelecida no pacto da Aliança que deveriam reger todos os relacionamentos
sociais, econômicos, políticos e religiosos da nação. E não se escusa em
anunciar a proximidade do juízo sobre o Reino de Israel.
A reação por
parte dos seus ouvintes é imediato. Diante da aparente indiferença do rei e sua
corte, coube a Amazias, sacerdote de Betel, se contrapor à pregação de Amós. O
líder religioso acusa Amós de agitador e de pregar por dinheiro, expulsando-o
do templo.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
ivanpgds@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaobiblica.spaceblog.com.br/
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Referências Bibliográficas
BRIGHT, J. História de
Israel. São Paulo: Paulus, 7ª ed., 2004.
CHAMPLIN, Russel Norman. O
Antigo Testamento interpretado versículo por versículo. 2. ed. São
Paulo: Hagnos, 2001.
FOHRER, Georg. História
da religião de Israel. [Tradução: Josué Xavier; revisão: João Bosco de
Lavor Medeiros]. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.
HASEL, Gerhard F. Teologia
do Antigo e do Novo Testamento: questões básicas no debate atual. [Tradução
do AT: Luís M. Sander, trad. do NT: Jussara Marindir P. S. Arias. São Paulo:
Ed. Academia Cristã Ltda, 2007.
HUBBARD, D. Comentário
bíblico de Joel e Amós. São Paulo: Vida Nova, 1995.
KIRST, Nelson. Amós:
textos selecionados. São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1981.
LASOR, William. Introdução
ao Antigo Testamento. [Tradução: Lucy Yamakamí]. São Paulo: Vida Nova,
1999.
MERRILL, Eugene. História
de Israel no Antigo Testamento. [Tradução: Romell S. Carneiro]. Rio de
Janeiro: CPAD, 2001.
PAPE, Dionísio. Justiça e
esperança para hoje: mensagem dos profetas menores. São Paulo: ABU
Editora, 2ª ed., 1983.
PRADO, José Luiz Gonzaga
do. O pastor de Técua: vida do profeta Amós. São Paulo:
Paulinas, 1987.
ROWLEY, Harold Henry. A
fé em Israel. [Tradução: Alexandre Macintyrel]. São Paulo: Editora
Teológica, 2003.
SINCRE, José Luís. Com os
pobres da terra: a justiça social nos profetas de Israel.[Tradução: Carlos
Feliciano da Silveira]. Santo André, São Paulo: Ed. Academia Cristã Ltda;
Paulus Editora, 2011.
VAUX, R. de. Instituições
de Israel no Antigo Testamento. [Tradução: Daniel de Oliveira]. São
Paulo: Editora Teológica, 2003
[1] Aqueles
que exerceram o ofício profético anteriormente são denominados de profetas
“orais” porque suas mensagens não foram registradas. A partir de Amós os
profetas são chamados de “literários” ou “escritores” porque os
livros trazem seus nomes ou estão diretamente ligados a eles. Mas esta
classificação demonstra ser limitada, como bem demonstra LaSor: “Por um
lado, um livro (ou dois) leva o nome de Samuel. (Não vem ao caso se ele
escreveu ou não.) Por outro lado, não se deve pressupor que os profetas
‘escritores’ puseram-se a escrever livros de profecia. Os indícios no livro que
leva o nome de Jeremias indicam que ele era principalmente um profeta ‘oral’ e
que o registro escrito de sua profecia foi em grande parte trabalho de Baruque
(Jr.36:4,32). Fica claro pelo conteúdo deles que a maior parte dos livros
proféticos foi primeiro mensagem oral, escrita mais tarde, talvez pelo próprio
profeta, talvez por seus discípulos”. (LASOR, 1999, p. 243-244)
[2] Conforme
José Luís Sicre a Misná (comentário judaico) e diversos estudiosos recentes
como NEHER, KAPELRUD, MONLOUBOU, RANDELLINI, WOLFF, RUDOLPH, VESCO, SOGGIN,
detinha um status oficial de alto funcionário da corte de Ozias.
[3] Este
tipo de comércio exigiria que Amós fizesse periódicas viagens para a região
norte, na Galiléia, e ainda para as encostas junto à planície que perfazem as
regiões da Filistéia (HUBBARD, 1995, p. 176).
[4] Um
povoado ao sul da Palestina que ficava a 20 km de Jerusalém e cerca de 8 km ao
sul de Belém, antiga Bethlehem. Estava localizada na encosta de um monte (920
metros) na entrada de um deserto que tem o mesmo nome (II Cr 20.20) e se
estende para oriente, próximo do Mar Morto. No século X (a.C.) foi incluída
pelo rei Roboão entre as quinze cidades transformadas em fortalezas para defesa
do reino do Sul, Judá (II Cr 11.5-10).
[5] A
politica do Reino do Norte (Israel) foi conduzida durante mais de um século
pela dinastia de Jeú, que assumiu o trono após assassinar todos os descendentes
de Acab e Jezabel, de maneira que consolidou a sua autoridade em meio a uma
dolorosa e cruel guerra civil. Tudo isso sob a supervisão dos profetas Elias e
Eliseu, que haviam prognosticado a erradicação da dinastia de Acab por causa de
sua idolatria e abandono da Torá.
[6] Há
uma discrepância de doze anos entre a morte de Jeoás, pai, e o inicio do
reinado de Jeroboão, filho. A explicação mais provável é que nesse período de
doze anos houve uma co-regencia que foi acoplado perfazendo um total de
quarenta e um anos de reinado. Esta pratica foi utilizada no reino de Judá e
era comum nos registros do Oriente Médio (cf. MERRILL, 2001, p. 395-396).
[7] É
importante realçar que em nenhum momento Amós condena a prosperidade material
dos cidadãos israelitas, mas o que é condenável é a atitude dos ricos em
relação aos pobres e necessitados. Uma pessoa não é mais pecador por morar num
palácio e nem menos pecador por morar em uma favela.
[8] "A corvéia era
a obrigação que o servo tinha de trabalhar de graça alguns dias por semana no
manso senhorial, ou seja, no cultivo das terras reservadas ao senhor."
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