sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Ação de Graças [εὐχαριστία - eucharistía]


        Todo mês de novembro, em muitos lugares do mundo, milhões de pessoas comemoram o dia de Ação deGraças. A data foi instituída no Brasil pela Lei n.° 781, de 17 de agosto de 1949, mas como não é um feriado (ex. Estados Unidos), nem todos comemoram o Dia de Ação de Graças no país. Essa comemoração fica a cargo de algumas igrejas protestantes.
A palavra grega [εὐχαριστία - eucharistía] é composta pelo prefixo “eu” que significa bem, em todos os sentidos (bom, agradável, justo) e pelo substantivo “charis” [ χαρις ] que significa graça, Graça, favor, generosidade e a tradução dela é “ação de graças”.
            No Primeiro Testamento (Antigo Testamento) o termo que expressa “ações de graças” é a palavra “todah” e que era relacionada a um sacrifício (pacífico), seguidos de cânticos e uma refeição onde a família e amigos eram convidados para “agradecer” a Deus por um grande livramento de perigo, doenças ou espada. A importância desta oferta pode ser aferida nas palavras de um antigo ensino rabínico: "Na era messiânica vindoura, todos os sacrifícios cessarão, mas a oferta de agradecimento [todah] nunca cessará" (Retirado do Pesiqta, conforme citado em Hartmut Gese “Essays On Biblical Theology (Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1981). A refeição se constitui em um cordeiro seria sacrificado (Templo) e o pão para a refeição seria consagrado no momento em que o cordeiro fosse sacrificado. O pão e a carne, juntamente com o vinho, constituiriam os elementos da refeição sagrada da todah , que seria acompanhada de orações e cânticos de ação de graças, como o Salmo 116.
Foi o rei Davi que introduziu o “todah” na liturgia do culto israelita. Após trazer a Arca da Aliança para Jerusalém Davi ordena que se façam "ofertas pacíficas" e a “todah” era a oferta pacífica mais importante e comum. Todos os elementos da todah estavam presentes, pois o rei ofereceu pão e vinho junto com a carne dos sacrifícios (1Cr 16.3), e Davi (compositor e cantor) fez com que os levitas liderassem o povo em “cânticos todah” , isto é, cânticos de “ação de graças” (1Cr 16.8-36). Alguns exemplos de salmos de ação de graças (todah) são: 16, 18, 21, 32, 65, 100, 107, 116, 124, 136. E mais ainda, o rei estabeleceu através de Asafe que os levitas devessem agradecer e louvar a Deus "continuamente" (1Cr 16.7, 37, 40), caracterizando a partir daquele momento que a adoração no Templo seria pautada por uma liturgia todah, ou seja, uma liturgia de ação de graças. As orações pelo sacrifício da manhã e da noite foram caracterizadas pelo todah de ação de graças (1Cr 16.40-41).
 No grego o termo “ação de graças” está associada diretamente a outra palavra (ainéo) elogio, louvor e ambas expressam a reação ou resposta em relação à outra pessoa e, mormente no grego clássico quando estão conectadas essas ações de graça e louvor é reservado para uma divindade, o que era frequentemente destacada com um estilo de escrita específico (formato) em uma correspondência. Epiteto fala de “tó eucháriston”, como uma atitude ética básica, enfatizando o dever de se dar graças a Deus.
            Nos escritos neotestamentário é mais utilizado pelo apóstolo Paulo em suas epístolas (24 vezes na forma verbal e 12 vezes na forma substantiva); nos escritos evangélicos aparece apenas 11 vezes e sempre na forma verbal. Na forma adjetiva apenas uma única vez na carta de Paulo aos Colossenses (3.15). Todas as referências são sempre relacionadas a Deus e apenas em três destas passagens se referem a uma pessoa (Lc 17.16; At 24.3 e Rm 16.4).
            O apóstolo Paulo utiliza com frequência esta palavra, na abertura de suas cartas, para expressar sua gratidão a Deus pela vida dos seus destinatários, independentemente dos temas espinhosos que muitas vezes terá que tratar no transcorrer de sua correspondência (Rm 1.8; 2Co 1.11; Ef 1.16; Cl 1.3; 1Ts 1.2; 2Ts 1.3; Fm 1.4).
            Todas as vezes que se relaciona a Deus a forma substantiva é sempre empregada no modo absoluto, de maneira que ação de graças e louvor se constituem em uma atitude fundamental e permanente da vida do cristão. Deve ser manifestadas em nome de Jesus (Ef 5.20); toda oração e súplica devem ser acompanhadas de ações de graça (Fp 4.6; Cl 2.7; 4.2; 1Tm 2.1).
Nas narrativas evangélicas, quando da multiplicação dos pães, Jesus segue a tradição judaica de dar ações de graça antes das refeições [Louvado sejas, Javé, nosso Deus, rei do universo...] e ora dando graças ao Pai antes de efetuar o milagre e alimentar aquela grande multidão (Mc 8.6).
Mas é quando Jesus faz a instituição da Ceia que podemos perceber a mais significativa relação com a “todah” veterotestamentária. Evidente que a Ceia é instituída dentro e com os elementos da refeição pascoal, cujas implicações teológicas são indiscutíveis. Todavia, a ceia celebrada no cenáculo, é uma refeição de Páscoa e de “ação de graças”. A Páscoa contém todos os mesmos elementos encontrados na todah : pão, vinho e sacrifício de um cordeiro, junto com hinos e orações. De fato, os salmos de Hallel (113-118), cantados durante a refeição da Páscoa, eram todos salmos de todah. Philo, um judeu do primeiro século, descreve a Páscoa como um festival de ação de graças: "E este festival é instituído em memória e como forma de agradecimento [eucaristia – ação de graças] pela grande migração que eles fizeram do Egito" (Philo, The Special Laws, II, 145. The Works of Philo, trans. by C.D. Young (Peabody, MA: Hendrickson Publishers, 1993).
Quando os discípulos veem Jesus partindo o pão e pronunciando palavras de “ação de graças” (eucaristia), eles estão apenas recordando a grande libertação do Egito (Êxodo), mas o que eles vão entender somente depois da morte e ressurreição é que Jesus está contemplando muito além da história da salvação de Israel – pois através de Sua morte e ressurreição milhões haveriam de serem salvos (libertados) em todas as nações. E Jesus estabelece essa verdade como fundamento da “Nova Aliança” ordenando: “Façam isso em memória de mim, até que eu venha” (Lc 22.19). Trazer à memória as ações salvadoras de Deus é o grande objetivo da “ação de graças” (todah). Portanto, a Ceia cristã é uma celebração e não um ato fúnebre. A nossa adoração e participação da Ceia deve ser permeada pela ação de graças, pois somos lembrados perpetuamente do grande dom (presente) que Jesus nos deu através de seu sacrifício na cruz por nós – nas palavras de João Batista – o Cordeiro de Deus que tira o (nosso) pecado do mundo.
O apóstolo Paulo compreendeu como poucos a importância da ação de graças na vida do cristão.             Além de utilizar o termo nos prólogos de suas epístolas, o apóstolo Paulo utiliza ação de graças por tudo quanto Deus esta fazendo na vida das comunidades e dos cristãos: pelo crescimento espiritual na vida comunitária (2Co 4.15); pela participação na herança escatológica (Cl 1.12); pela aceitação da pregação evangélica (1Ts 2.13); pelas coletas recebida (2Co 9.11s). Os projetos de Paulo são seus motivos de gratidão a Deus (1Ts 3.9); para o apóstolo a ausência de ação de graças é reflexo de deficiência no conhecimento de Deus (Rm 1.21) e uma triste marca da sociedade sem Deus. Desta forma, todas as ações do cristão devem ser feitas em espírito de gratidão (Ef. 5.4) e para o apóstolo a fé em Jesus Cristo somente é genuinamente expressada quando temos disposição e coragem para sermos gratos a Ele por tudo ou em todas as circunstâncias.
            No livro do Apocalipse tanto na forma substantiva quanto verbal “ação de graças” está na composição das doxologias e hinos apocalípticos (Ap 4.9; 7.12). Todos os seres vivos querem celestiais ou terrestres oferecerão permanentemente ação de graças ao Cristo glorificado que se assenta no trono e reina. Mas esses cânticos não decorrem do temor e sim da gratidão por tudo quanto Ele faz. Enquanto vivemos nesse mundo tenebroso nem sempre é perceptível o quanto Deus age bondosamente em nosso favor, mas na glória, livre de todos os males que nos afligem, haveremos de oferecer a Cristo ação de graças permanentemente.   



Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
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