quarta-feira, 21 de setembro de 2016

ABRAÃO EM TRÊS TEMPOS - Islamismo

Poucos personagens religiosos se revestem de tão grande reverência quanto a figura de Abraão. Ele desempenha um papel fundamental nas narrativas religiosas das três maiores religiões monoteístas: judaísmo, islamismo e cristianismo.

Abraão no Islamismo
            Na tradição islâmica Abraão (no árabe Ibrâhim)[1] é um dos personagens mais citado, perdendo apenas para Moisés, no livro sagrado do Alcorão, onde se refere a ele como “aquele que fala com Deus” inferindo uma ideia de intimidade que ele desfrutou em sua comunhão com Deus.
            Se os judeus recebem as instruções divinas por meio de Moisés e os cristãos por meio de Jesus Cristo, no islã as instruções sagradas foram dadas por meio de Abraão, como que demonstrando a primazia da revelação corânica: “Porque disputais sobre Abraão, se a Torá e o Evangelho não se fizeram descender senão depois dele?” (3.65).
            Originalmente a adoção de Abraão como o grande profeta do Islã implicava em uma proposta unificadora, pois Abraão é um personagem comum tanto aos judeus quanto aos cristãos, mas também numa proposta de colocar o islã como uma religião “primordial” entre as demais tradições.
            O Alcorão apresenta Abraão como um “mulçumano” (3.66), de maneira que não é nem judeu e nem cristão, mas conforme a definição do termo “hanîf” (pl. hunafâ’) relaciona-se com Deus (Alláh) sem associar-se a nada, ou seja, sem uma revelação. Segundo eles Abraão chega-se a Deus observando os sinais da Natureza e uma busca interior (6. 74-79):     
74. E lembra-lhes, Muhammad, de quando Abraão disse a seu pai Ãzar: "Tomas ídolos por deuses? Por certo, eu te vejo e a teu povo em evidente descaminho." 75. E, assim, fizemos ver a Abraão o reino dos céus e da terra, e isso para que fosse dos convictos. 76. Então, quando a noite o envolveu, ele viu um astro. Disse: "Eis meu Senhor." E quando ele se pôs, disse: "Não amo os que se põem." 77. E, quando viu a lua surgindo, disse: "Eis meu Senhor." E, quando ela se pôs, disse: "Se meu Senhor não me guia, em verdade, estarei entre o povo descaminhado." 78. E, quando viu o sol surgindo, disse: "Eis meu Senhor; este é o maior!" E, quando ele se pôs, disse; "Ó meu povo! Por certo, estou em rompimento com o que idolatrais. 79. "Por certo, eu dirijo minha face, como monoteísta sincero, para Quem criou os céus e a terra. E não sou dos idolatras."
            Abraão assume uma posição contraria a toda e qualquer espécie de idolatria e adora somente um Deus (Allâh’). Assumindo esta posição monoteísta ele contraria toda sua história e cultura – Ur,[2] na Mesopotâmia,[3] tinha uma cultura religiosa politeísta. Descobertas arqueológicas daquela época têm oferecido um retrato vívido da religião da Mesopotâmia.  Seus habitantes eram politeístas que acreditavam em um panteão, no qual cada deus tinha uma esfera de influência.  O grande templo dedicado ao deus lua acadiano,[4] Sin, era o centro principal de Ur.  Haran também tinha a lua como figura divina central.  Acreditava-se que esse templo era o lar físico de Deus.  O deus principal do templo era um ídolo de madeira com ídolos adicionais, ou ‘deuses’, para servi-lo.
Abraão vai contestar seu pai[5] e seus contemporâneos (37:85-86): “Quando disse a seu pai e a seu povo: ‘O que adorais’? Desejais a mentira: adorar deuses em vez de Allah”? O livro do Alcorão não menciona a idade exata na qual Abraão recebeu sua primeira revelação, entretanto, parece ter sido quando ele era jovem, já que o Alcorão o chama de rapaz quando seu povo tenta executá-lo por rejeitar seus ídolos.
Vendo que a idolatria estava enraizada nos corações de seus concidadãos ele chega a ficar enfermo (37:89). No Alcorão encontra-se registros de que Abraão em sua indignação contra a idolatria começa a destruir toda espécie de ídolos, sendo então condenado pelo rei Nimrod[6] a ser lançado ao fogo.[7] Mas em nenhum momento ele recuou e suas palavras foram: ““Deus é suficiente para mim e Ele é o melhor para cuidar de todos os assuntos” (Saheeh Al-Bukhari). A tradição islâmica narra que quando ele foi lançado ao fogo o anjo Gabriel vendo a fé dele lhe outorga o sobrenome “Khalil de Deus” (íntimo/amado de Deus, não dado a nenhum antes) – e milagrosamente o fogo não lhe queima - ““Nós (Deus) dissemos: Ó fogo, sê frescor e poupa Abraão! Intentaram conspirar contra ele, porém, fizemo-los perdedores.” (21:69). Devido a essa força de fé/obediência o Alcorão nomeia a única religião verdadeira como o “Caminho de Abraão”, apesar dos profetas antes dele, como Noé, adotarem a mesma fé. A partir dele Deus abençoa sua descendência e os constitui profetas: Ismael, Isaque, Jacó (Israel) e Moisés, que deveriam guiar seu povo para a verdade.
            Um acontecimento da vida de Abraão comum às três tradições monoteísta é a prova de obediência irrestrita dele, quando Deus lhe pede o sacrifício de seu filho. Em todas há um objetivo de contrastar as demais religiões que promoviam sacrifícios humanos. No Alcorão isso ocorre quando Abraão decide sair de Ur, e enquanto invoca a Deus é solicitado que sacrifique seu filho primogênito Ismael (não Isaque):
98. E desejaram armar-lhes insidias; então, fizemo-los os mais rebaixados. 99. E ele disse: "Por certo, vou aonde meu Senhor me ordena; Ele me guiara. 100. "Senhor meu! Dadiva-me com um filho, dos íntegros."101. Então, alvissaramo-lho um filho clemente. 102. E, quando atingiu a idade de labutar com ele, este disse: "Ó meu filho! Por certo, vi em sonho que te imolava. Então, olha, que pensas disso?" Ismael disse: "O meu pai! Faze o que te é ordenado. Encontrar-me-ás entre os perseverantes, se Allah quiser." 103. E, quando ambos se resignaram, e o fez tombar, com a fronte na terra, livramo-lo 104. E chamamo-lo: "Ó Abraão! 105. Com efeito, confirmaste o sonho." Por certo, assim recompensamos os benfeitores. 106. Por certo, essa é a evidente prova. 107. E resgatamo-lo com imolado magnífico. 108. E deixamos está bênção sobre ele, na posteridade: 109. "Que a paz seja sobre Abraão!" (37:98-109).
            Uma outra diferença com a narrativa judaica/cristã, segundo a tradição islâmica Agar, a concubina e seu filho Ismael, nunca foram abandonados por Abraão. Eles foram morar no vale de Beca (atualmente Meca) e Abraão os visitava sempre. Essa tradição islâmica tem um fundo judaico/cristão, pois no Antigo Testamento (Torah) registra que Abraão foi enterrado por seus dois filhos, Isaque e Ismael, revelando que mantiveram algum tipo de contato.
Assim, após uma separação de vários anos, mais uma vez pai e filho se encontram.  Então imbuídos de uma ordem divina eles construíram a Caaba por ordem de Deus como um santuário permanente; um local estabelecido exclusivamente para a adoração de Deus.  Desta forma, no mesmo deserto árido onde Abraão havia deixado Agar e Ismael anteriormente, foi que ele suplicou a Deus para fazer dele um lugar onde pudessem estabelecer a oração, livre de idolatria, conforme a narrativa do Alcorão:

“E recorda-te de quando Abraão disse: Ó Senhor meu, pacifica está Metrópole e preserva a mim e aos meus filhos da adoração dos ídolos! Ó Senhor meu, já se desviaram muitos humanos. Porém, quem me seguir será dos meus, e quem me desobedecer... Certamente Tu és Indulgente, Misericordiosíssimo! Ó Senhor nosso, estabeleci parte da minha descendência em um vale inculto perto da Tua Sagrada Casa para que, ó Senhor nosso, observem a oração; faze com que os corações de alguns humanos os apreciem, e agracia-os com os frutos, a fim de que Te agradeçam. Ó Senhor nosso, Tu sabes tudo quanto ocultamos e tudo quanto manifestamos, porque nada se oculta a Deus, tanto na terra como no céu. Louvado seja Deus que, na minha velhice, me agraciou com Ismael e Isaac! Como o meu Senhor é Exorável! Ó Senhor meu, faze-me observante da oração, assim como à minha prole! Ó Senhor nosso, escuta a minha súplica! Ó Senhor nosso, perdoa-me a mim, aos meus pais e aos fiéis, no Dia da prestação de contas!” (14:35-41)

Desta forma, anos depois, Abraão mais uma vez reunido com seu filho Ismael, construía a honrada Casa de Deus, o centro de adoração, para cuja direção as pessoas deveriam voltar seus rostos oferecendo orações, tornando-se um local de peregrinação.  Existem muitos versículos no Alcorão que descrevem a santidade da Caaba e o propósito de sua construção:
“E (recorda-te) de quando indicamos a Abraão o local da Casa, dizendo: Não Me atribuas parceiros, mas consagra a Minha Casa para os circungirantes, para os que permanecem em pé e para os genuflexos e prostrados. E proclama a peregrinação às pessoas; elas virão a ti a pé, e montando toda espécie de camelos, de todo longínquo lugar.” (22:26-27)
Segundo o Alcorão a Caaba é o primeiro lugar de adoração apontado para toda a humanidade com o propósito de orientação e bênção:
“A primeira Casa (Sagrada), erigida para o G6enero humano, é a de Bakka, onde reside a bênção servindo de orientação à humanidade. Encerra sinais evidentes; lá está a Estância de Abraão, e quem quer que nela se refugie estará em segurança. A peregrinação à Casa é um dever para com Deus, por parte de todos os seres humanos, que estão em condições de empreendê-la;” (3:96-97)
            Abraão também orou que um profeta surgisse da descendência de Ismael, que seriam os habitantes dessa terra, como a descendência de Isaque habitaria as terras de Canaã: “Ó Senhor nosso, faze surgir, dentre eles, um Mensageiro, que lhes transmita as Tuas leis e lhes ensine o Livro, e a sabedoria, e os purifique, pois Tu és o Poderoso, o Prudentíssimo” (Alcorão 2:129).
            De acordo com a tradição islâmica a oração de Abraão por um Mensageiro foi respondida vários milhares de anos depois quando Deus fez surgir o Profeta Muhammad (Maomé) entre os árabes, e Meca se constitui em um santuário e Casa de Adoração para toda a humanidade e o Profeta de Meca deve espalhar sua mensagem para toda a humanidade.
O ápice da vida de Abraão é a conclusão de seu propósito: a construção de um local de adoração para toda a humanidade, sem qualquer acepção de raça ou cor escolhida, para a adoração do Único e Verdadeiro Deus. 
            Quanto aos descendentes de Abraão, Ismael torna-se o patriarca dos árabes, mais precisamente dos habitantes ao norte. Seu, irmão Isaque tornou-se pai de Esaú (chamado Edom) e de Jacó (chamado Israel). Para as tradições judaica/cristã os descendentes de Esaú são apresentados como idolatras, enquanto os descendentes de Jacó tornam-se a nação de Israel, receptora das revelações divinas, que posteriormente serão recebidas e continuadas pelos cristãos e a Igreja Cristã.
            Depois da morte de Sara, o patriarca ainda se casou com Queturá, com quem teve outros filhos. O nome Queturá relaciona-se com “incenso”, fazendo referência as fragrâncias da Arábia, de onde procediam o incenso e a mirra, atualmente Iêmen.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/



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Referências Bibliográficas
ENCICLOPÉDIA CATÓLICA: Abraham (Abraão). Enciclopédia Católica, Volume I. Copyright © 1907 Robert Appleton Company. Edição Online




[1] Na tradição judaica/cristã ele tem o nome alterado por Deus de Abrão, inicialmente, para Abraão posteriormente, entretanto, o Alcorão mantém silêncio sobre esse assunto, sem afirmá-lo ou negá-lo. O mesmo pode ser dito dos nomes Sarai e Sara.
[2] Ur era uma das mais antigas e famosas cidades babilônicas. Seu local agora se chama Mugheir, ou Mugaiar, na margem ocidental do Eufrates, no sul da Babilônia. (Dicionário Bíblico de Easton de 1897).
[3] Mesopotâmia era uma antiga região do sudeste da Ásia entre os rios Tigre e Eufrates onde é hoje o Iraque. Mesopotâmia: Uma antiga região do sudeste da Ásia entre os rios Tigre e Eufrates onde é hoje o Iraque. Provavelmente se estabeleceu antes de 5000 A.C., a área foi o lar de várias civilizações primitivas, incluindo os sumérios, acadianos, babilônios e os assírios.”
[4] Acádia era uma região antiga da Mesopotâmica que ocupava o norte da Babilônia.
[5] Seu pai era ‘Aazar’, ‘Terá’ ou ‘Terakh’ na Bíblia, um idólatra, que descendia de Sem, o filho de Noé.  Alguns estudiosos de exegese sugerem que ele pode ter recebido o nome de Azar por causa de um ídolo do qual era devoto. É provável que tenha sido um acadiano, um povo semita da Península Árabe que se estabeleceu na Mesopotâmia em algum momento do terceiro milênio a.C.
[6] Nimrod é um monarca da mesopotâmica mencionado no livro do Génesis, que também aparece em muitas lendas e contos populares. Ele é retratado na Bíblia como um governante poderoso e o construtor que fundou muitas cidades, incluindo a grande Babel ou Babilônia.
[7] O relato corânico é ligeiramente diferente do mencionado nas tradições judaicas, no Talmud, porque dizem que Abraão destruiu os ídolos pessoais de seu pai.

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