O EVANGELHO NÃO É PARA SER ADMIRADO, MAS PARA SER VIVIDO!
O Evangelho não é para ser admirado, mas para ser vivido
A perícope de Lucas 1:1–4, embora dividida em quatro versículos nas
edições modernas da Bíblia, constitui no texto grego um único período composto
por 82 palavras. Essa unidade sintática e semântica revela a intenção do autor
de apresentar uma introdução coesa e cuidadosamente elaborada à sua obra. A
subdivisão em versículos, embora útil para fins didáticos e litúrgicos, não
deve obscurecer a integridade literária do trecho.
Desde as primeiras linhas, Lucas demonstra preocupação com a
precisão e a confiabilidade de sua narrativa. Ele não pretende apenas relatar
eventos, mas oferecer fundamentos sólidos para uma fé segura. Sua formação como
médico — profissão que exige atenção meticulosa aos detalhes e rigor na
observação — reforça a analogia: assim como a saúde física depende de
diagnósticos precisos, a saúde espiritual requer testemunhos fiéis sobre a vida
e obra de Jesus Cristo.
Fundamentação Histórica e Teológica
Lucas propõe uma “narração das coisas que entre nós se cumpriram”
(v.1), utilizando o termo grego pragmata, que denota ações concretas e
históricas. A escolha lexical indica que sua obra não se limita à exposição
teórica, mas visa à aplicação prática e vivencial. O Evangelho, portanto, não é
um objeto de contemplação estética, mas um chamado à transformação existencial.
Essa perspectiva é reiterada em Atos 1:1, quando Lucas resume seu
primeiro volume como “tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar”. A ordem
dos verbos — fazer e ensinar — sugere que a ação precede a instrução, e que o
ensino de Jesus é inseparável de sua práxis.
A expressão “que se cumpriram entre nós” pode ser
interpretada como uma referência ao cumprimento das promessas divinas no
contexto da comunidade cristã primitiva. Os eventos narrados — tanto no
Evangelho quanto em Atos — devem ser compreendidos como realizações do
propósito escatológico de Deus, conforme delineado nas Escrituras Hebraicas e
reinterpretado à luz da revelação cristológica (cf. Lc 24:45–47).
A obra lucana, portanto, transcende o gênero historiográfico
convencional. Trata-se de uma teologia narrativa, cujo objetivo é testemunhar
as ações salvíficas de Deus na História humana.
A Tradição e a Intenção Autoral
Lucas reconhece que não é o primeiro a escrever sobre Jesus. Ele
menciona que “muitos empreenderam uma narração dos fatos”, o que indica
a existência de ensinos orais e escritos anteriores. Entre essas fontes, é
plausível incluir o Evangelho de Marcos, bem como coleções de ditos e relatos
que circulavam nas comunidades cristãs.
Ao invés de rejeitar essas tradições, Lucas as valoriza como parte
do testemunho coletivo. No entanto, ele propõe oferecer um relato mais ordenado
(kathexēs), fruto de investigação cuidadosa (parēkolouthēkoti),
com o propósito explícito de fortalecer a fé de Teófilo e dos leitores
subsequentes.
Lucas se apresenta como um teólogo-historiador,
alguém que une método crítico e compromisso espiritual. Sua obra é resultado de
pesquisa, organização e interpretação, e visa desempenhar para as gerações
posteriores o papel que as testemunhas oculares desempenharam para a primeira
geração cristã.
A Segurança da Fé
O versículo 4 encerra o prólogo com uma declaração de propósito: “para
que conheças com certeza a segurança das palavras nas quais foste instruído”.
O verbo grego epignōs denota conhecimento profundo e seguro, enquanto o
substantivo asphaleia indica firmeza, estabilidade e confiabilidade.
A expressão “nas quais foste instruído” (katēchēthēs)
sugere que Teófilo já havia recebido ensino cristão, provavelmente por meio do
ensino (Didaquê) oral. Lucas não introduz doutrinas inéditas, mas confirma e
aprofunda aquilo que já fora transmitido. Em tempos de incerteza e perseguição,
esse reforço da fé é pastoralmente necessário e teologicamente relevante.
Hermenêutica da Escritura
A afirmação de João 5:39 — “Examinai as Escrituras, porque vós
cuidais ter nelas a vida eterna” — é pertinente à abordagem lucana. O verbo
grego ereunate pode ser lido como imperativo ou indicativo, mas a
maioria dos intérpretes opta pelo imperativo, entendendo que Jesus convoca a
uma leitura diligente e reveladora das Escrituras.
Lucas responde a esse chamado ao oferecer uma narrativa que não
apenas informa, mas transforma. Sua obra é um convite à leitura teológica, à
investigação histórica e à vivência espiritual.
Conclusão e Exortação
A introdução do Evangelho de Lucas revela um autor comprometido com
a verdade, a clareza e a edificação da fé. Ele escreve com rigor metodológico e
sensibilidade pastoral, reconhecendo a importância de testemunhas confiáveis e
da tradição cristã.
A fé cristã, segundo Lucas, não é construída sobre especulações,
mas sobre fatos bem apurados e interpretados à luz da revelação divina. Sua
obra nos convida a examinar as Escrituras com profundidade, a viver o Evangelho
com integridade e a buscar, dia após dia, a segurança espiritual que só a
Palavra de Deus pode oferecer.
Utilização livre desde que citando a fonteGuedes, Ivan PereiraMestre em Ciências da Religião.me.ivanguedes@gmail.comOutro BlogHistoriologia Protestante
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