terça-feira, 12 de janeiro de 2016

ATOS - Quem foi Teófilo?

Há uma discussão entre os vários estudiosos sobre a pessoa de Teófilo. A questão é se ele foi um personagem real ou um personagem literário, portanto fictício, criado pelo evangelista Lucas.

Personagem literário: O nome Teófilo (Θεόφιλος) significa "amigo de Deus" e por esta razão muitos estudiosos entendem que Lucas utiliza-se deste artifício para se dirigir secretamente a todos os cristãos. A razão é que em seus dias os judeus estavam abertamente perseguindo os cristãos e ele empregou este criptograma para desviar a atenção dos adversários, em relação aos seus reais leitores. Alguns defendem que vários personagens citados por Lucas ainda estavam vivos, incluindo Maria mãe de Jesus, e poderiam correr risco de vida, daí a precaução de Lucas. Esta interpretação não se sustenta. As fortes indicações são de que Lucas não escreveu para os cristãos na Palestina. A data e o local de onde Lucas escreveu são motivos de muitas possibilidades, portanto, se Maria ou outras lideranças ainda estavam vivas por ocasião da circulação deste evangelho são hipotéticas. E mais ainda, a utilização de personagens fictícios é estranha aos escritores bíblicos. Seria muito melhor não fazer nenhuma dedicatória, como Marcos, Mateus e João, do que fazê-la de forma fictícia.

Personagem real: Podemos aceitar a ideia de que Teófilo era uma pessoa real, com um nome bonito, embora não incomum, uma pessoa que deveria estar ocupando uma alta posição no mundo romano, e convertido ao Senhor Jesus. O adjetivo “excelentíssimo”, que ele omite em Atos,[1] mas que utiliza no seu primeiro volume (evangelho) mormente é destinado para qualificar a condição social de uma pessoa ou para se referir alguma autoridade, conforme exemplo aqui mesmo no livro de Atos, quando Tertulo, um advogado, se dirige ao governador Felix (Atos 24: 3), durante o processo movido contra Paulo pelos judeus.
Diversos comentaristas bíblicos corroboram a interpretação de que Teófilo é uma pessoa real. Carson se referindo a expressão "excelentíssimo Teófilo" declara: "A maneira mais natural de entender a expressão é que Teófilo era uma pessoa de verdade e o mecenas de Lucas, provavelmente pagando os custos da publicação do livro, e que por isso a ele dirigido. O adjetivo provavelmente significa que Teófilo era uma pessoa de posição". (2001, p. 131). Childers concorda e especifica que o adjetivo “é um título de respeito, usado para pessoas de autoridade. Teófilo foi provavelmente um oficial romano. Talvez isto seja ressaltado pelo fato de o autor utilizar o mesmo título, no original em grego, três vezes no livro de Atos (nessas ocorrências, traduzido como ‘excelentíssimo’) e nessas três vezes[2] ele se dirige a um oficial romano" (2006, p. 356). Sem discordar dos citados anteriores, mas com um tom diferente, Hendriksen discute se a utilização da expressão elogiosa é suficiente para colocar Teófilo como uma autoridade romana, de maneira que para ele é no mínimo precipitado “determinarmos se aqui Teófilo é mencionado como ocupante de uma elevada posição no governo, como parte da ordem equestre ou simplesmente como uma pessoa digna de honra muito elevada. Portanto, não podemos dizer se a tradução correta de Lucas (1.3) é ‘sua excelência' ou ‘excelentíssimo’”. Nos cabeçalhos ou introduções dedicatórias, o epíteto usado por Lucas aparece de forma bastante frequente, às vezes, quem sabe, como expressão de cortesia" (2003, p. 88).
O termo grego utilizado por Lucas para qualificar seu leitor pode tanto se referir a um oficial de patente elevada ou também pode apenas ser uma forma educada e amigável sem uma conotação oficial (cf. TENNEY, 2008, p. 839).
Uma outra hipótese, defendida por Ramsay, é de que o nome Teófilo seria um nome de batismo, portanto, conhecido apenas entre os cristãos, e que fora utilizado por Lucas para camuflar a verdadeira identidade de seu leitor, por causa do crescente tensões entre o Estado e a nascente igreja cristã (W. M. Ramsay, St. Paul the Traveller and Roman Citizen, 388, abud, TENNEY, 2008, p. 839).
Todavia, se Lucas originalmente desejava se referir a todos os cristãos e não especificamente a uma única pessoa, certamente ele utilizaria um termo plural que pudesse incluir um número indefinido de leitores, mas ele identifica seu leitor com um nome próprio que era comum em autores gregos e latinos. De acordo com TENNEY o nome Teófilo “é encontrado como um nome próprio no início do séc. 3º a.C. tanto nos papiros quanto nas inscrições (J. H. Moulton e G. Milligan, The Vocabulaty of the Greek Testament, 288) e como um nome judeu no Papiro Flinders Petrie (II, 28 ii 9), também do séc. 3º a.C.” (2008, p. 839).
Pelos termos utilizados por Lucas no evangelho Teófilo seria um cristão recentemente convertido e que está sendo instruído (discipulado). Essa é a opinião de Hendriksen: "É evidente que Teófilo já havia recebido alguma – talvez até mesmo uma boa quantidade de – informação sobre a doutrina cristã. Em certa medida, a verdade da religião cristã estivera ressoando em seus ouvidos; ou seja, que ele tivesse sido ‘catequizado'" (2003, p. 89). Essa preocupação de Lucas deve permanecer vigente em relação aos neófitos que necessitam sempre serem fundamentados nas verdades estabelecidas na Bíblia a respeito de tudo que concerne à fé cristã. Lucas fez uma acurada ou minuciosa pesquisa de todos os fatos relacionados à Jesus e ao Evangelho, o que em hipótese alguma fere a natureza da inspiração do texto evangélico por ele produzido, pois sua preocupação primária é de oferecer a Teófilo um firme fundamento para sua fé. O tornasse cristão não implica em renunciar a capacidade de pensar e investigar, pois o Espírito Santo convence do pecado, da verdade e do juízo de Deus, sem anular as faculdades naturais. A genuína religião cristã conclama a um exame sério e cuidadoso em tudo que se relaciona à fé.
Alguns defende a hipótese de que Teófilo fosse um nobre da grande e rica cidade de Antioquia, onde provavelmente veio a conhecer a mensagem do Evangelho e o médico Lucas. Essa possibilidade tem seus atrativos visto que de acordo com Eusébio e Jerônimo, Lucas era de origem síria e morador de Antioquia, e cuja cidade, segundo a narrativa lucana de Atos, veio a se constituir no grande centro missionário para os povos gentios e onde muitos dos personagens mencionados ali estiveram. Merrill informa que no Recognitions Clementino faz uma citação de um Teófilo de alta distinção na cidade de Antioquia, que deve ser portanto, o leitor a quem Lucas dedica suas obras (2008, p. 839).
Ainda resta a possibilidade, a partir da expressão grega “foste instruído” (Lc 1.4), de que Teófilo ainda não havia se tornado um cristão e havia recebido informações equivocadas ou até mesmo hostis sobre os cristãos e sua mensagem, de maneira que Lucas deseja corrigir, esclarecendo e relatando os fatos como realmente aconteceram, fundamentado em ampla pesquisa, inclusive com testemunhos oculares. Desta forma a obra em dois volumes Lucas-Atos se constituiria em uma primeira obra apologética demonstrando que o Cristianismo era uma religião pacífica e que os cristãos mantinham sua lealdade ao governo imperial. É possível identificar estes dois aspectos em diversos relatos, mais acentuadamente em Atos.     
Por fim, há uma tradição antiga segundo a qual Teófilo era ou viveu na cidade de Alexandria.
 Desta forma, é possível abalizar com grande grau de certeza de que Teófilo foi de fato um personagem real, e o epíteto “excelentíssimo”, em todos os sentidos do seu significado técnico, é dificilmente compatível com qualquer outra possibilidade.

 Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br

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Referências Bibliográficas
CARSON, D. A. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2001
CHILDERS, Charles L. Comentário Bíblico Beacon, v.6. Rio de Janeiro: CPAD, 2006.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento – Lucas, v.1. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
MARSHALL, I. Howard. Atos – introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1982. [Série Cultura Bíblica].
TENNEY, Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia, v. 5. Tradução da Equipe de colaboradores da Cultura Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2008.




[1] “A omissão da expressão de cortesia, 1excelentíssimo’ que se emprega em Lc 1:3 é bem natural na segunda ocorrência do nome” (MARSHALL, 1982, p. 56).
[2] As passagens são: Atos 23.26; 24.3 e 26.25.

10 comentários:

  1. Respostas
    1. Agradeço seu comentário animador. Meu propósito é despertar os leitores para a relevância dos textos bíblicos.

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    2. Grato! Suas palavras são de grande insentivo!

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    3. Quero externar minha GRATIDÃO pela grandiosidade desta obra literária.PARABÉNS.

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  2. Então o livro de ATOS é um Talmud.

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    1. Não sei se podemos fazer essa comparação, mas vou pesquisar sobre isso.

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  3. Ótimo estudo! Mas acho a hipótese menos relevante de Lucas estar utilizando tal epíteto ser dirigida à um mecenas, pois sabemos que Lucas exercia um ofício na medicina, e entendo que essa formação profissional não se dava ou despunhava-se a qualquer um que quisesse atuar na profissão ( não era acessível a todos). Com isso, Lucas não dependeria de um ou mais mecena para pagar sua arte. Abraço a todos e um especial à Guedes!

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  4. Exercer o ofício de medicina naqueles dias é bem diferente dos dias atuais, financeiramente, além do que a produção de uma obra dessa envergadura exigiria um custo econômico muito grande e por fim Lucas teria que ter tempo específico para escrever e organizar todo o material de pesquisa que ele havia recolhido. O apadrinhamento de escritores e outras artes era e continua sendo uma prática de pessoas economicamente abastada.

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