sábado, 14 de março de 2020

Filemom: Introdução Geral




“Esta carta nos dá um exemplo magistral e terno de amor cristão”.
Martinho Lutero
“pequena obra-prima da arte de escrever cartas”.
Ernest Renan
Introdução
            Dentro da organização do cânon neotestamentário a epístola a Filemom encerra o bloco dos escritos paulinos. O fato de ser a menor correspondência escrita pelo apóstolo, contendo apenas 335 palavras no texto grego, espalhadas por cerca de 30 versículos e de seu tom muito pessoal de um amigo e irmão para outro tem levado muitos estudiosos a minimizarem sua importância canônica. O fato de Paulo não tratar explicitamente de nenhum dos grandes temas doutrinários é outra razão para que esse documento inspirado seja relegado como um apêndice literário paulino.
            Todavia, quando tomamos essa pequena carta e a lemos com o coração e a mente abertos para apreender seus ensinamentos, somos gratificantemente surpreendidos por seus preciosos e incomparáveis ensinos. Aqui temos um Paulo que escancara seu coração e sua alma em favor de um escravo fugitivo. O grande apóstolo dos gentios nunca esteve preso aos grandes temas doutrinários, nunca se preocupou apenas com as comunidades por ele estabelecidas, mas sempre se preocupou com pessoas quer fossem seus cooperadores próximos ou mesmo pessoas que ele não conhecia pessoalmente. Nesses dias de evangelicalismo hedonista onde as instituições e suas estruturas físicas são prioridades, a preocupação de Paulo para com Onésimo, um escravo fugitivo, é um modelo e exortação para todos nós de que devemos prioritariamente nos preocupar com pessoas, pois o Evangelho somente é de fato Evangelho quando vivenciado.
Autoria
A ordem com que as cartas de Paulo foram organizadas na composição final do cânon neotestamentário não é cronológica, mas tudo indica que foi utilizado o critério lógico de cumprimento, iniciando-se com a mais extensa (Romanos) até a correspondência mais curta, sendo assim o posicionamento de Filemom no final do corpus paulino faz sentido.
Historicamente essa pequena carta foi endossada como escrito paulino desde muito cedo. Existe a possibilidade de que essa pequena carta seja a única que Paulo escreveu pessoalmente, e de que as demais, mais extensas, tenham sido escrito por um amanuense e/ou secretário, o que naquele momento era algo típico de um autor escrever pessoalmente uma correspondência particular, ditando os tratados mais gerais ao seu secretário que fazia a redação.
Partes dela ou a carta inteira aparecem nos códigos de papiros, maiúsculos e minúsculos, bem como nas versões siríaco antigo e latim antigo. Hoje, no século XXI, há um número suficiente de manuscritos para fornecer uma certeza justa sobre o texto de Filemom: Sinaiticus, A (Alexandrinus), C (Ephraimi Rescriptus: apenas versículos 1-2), D (Claromontanus), F (Augiensis) e G (Boernerianus) são alguns dos códices que contêm o texto completo da epístola ou partes disso. Crisóstomo e Jerônimo escreveram alguns dos primeiros comentários sobre essa epístola.
Poucos foram aqueles que questionaram seriamente a autenticidade da epístola,[1] embora ela seja aparentemente uma carta particular e não uma missiva dirigida a uma igreja. Há evidências externas abundantes nos escritos dos chamados “Pais da Igreja” no período subapostólico, que a citam com frequência. O comentarista bíblico W. Hendriksen (2007, p. 296) menciona as principais citações:
Não é de se surpreender, portanto, que Eusébio tenha dado a Filemom um lugar na sua lista de livros reconhecidos (História Eclesiástica III. xxv; cf. Ill.iii), e que a tenha considerado como uma das cartas de Paulo: “verdadeira, genuína e reconhecida”. Orígenes igualmente a aceita como carta de Paulo (Hom. in Jer. 19). Tertuliano estava bem familiarizado com ela e por causa do seu testemunho sabemos que até Marcião a aceitou, apesar de aquele herege rejeitar 1 e 2 Timóteo e Tito (Tertuliano, Contra Marcião V.xxi). E provável que Inácio tenha tomado emprestado de Paulo seu jogo de palavras feito em cima do nome próprio Onésimo (cf. Fm 10,11,20 com Inácio, Aos Efésios, cap. 2). A carta é também encontrada no Fragmento Muratoriano nas versões em latim e siríaco antigos.
E quando examinadas as chamadas evidências interna somos levados à conclusão de que essa pequena carta de fato saiu das mãos do apóstolo Paulo. E por fim, o fato de que sendo um documento pequeno e dirigido a uma pessoa específica e tratando de um problema específico, foi inserida no cânon bíblico do Segundo Testamento, só se justifica pelo fato de que seu autor é o apóstolo dos gentios; visto que o debate para a definição do cânon levou ao menos três séculos, caso houvesse dúvidas reais quanto à autoria paulina certamente ela teria ficado fora da seleção final dos documentos inspirados, como mais de uma centena ficaram ao longo dos debates.
Ocasião
            Em que momento de seu ministério Paulo escreveu esta pequena missiva? Ao menos cinco vezes o apostolo faz referência ao fato de estar encarcerado (vv. 1, 9, 10, 13, 23), todavia ele revela poucos detalhes sobre deste aprisionamento, mas deixa aberta a possibilidade de ser liberto em breve (v. 22), todavia não explicita a sua localização geográfica. Como em sua epístola aos Colossenses menciona um Onésimo (4.9) referindo-se a ele como um amado colega de trabalho e como parte daquela comunidade "um de vocês [colossenses]", concluiu-se plausivelmente que Filemom e sua igreja doméstica estão localizadas em Colossos, uma cidade perto da do Rio Lico na Ásia Menor.
Os comentaristas se debruçam então nos período em que Paulo enfrentou aprisionamentos mais longos para definir onde e quando o apostolo escreveu essa carta. Aqui temos por ordem de apreciação: o aprisionamento em Roma (em 60 a 62 AD), nesse caso, a carta teria sido escrita durante seus dois anos de prisão, provavelmente no início dos anos 60 (Atos 28.16,30); outros indicam seu período de aprisionamento em Éfeso, que ficava cerca de 160 quilômetros de Colossos, na costa da Ásia Menor, reforçada pelas afinidades literárias com a epístola maior aos Colossenses, de modo que ambas as cartas podem ter sido escritas de Éfeso (em 52-55 AD), o que colocaria as cartas em uma data muito cedo, na metade dos anos 50; a proposta mais recente é de que Paulo escreveu durante seu encarceramento na cidade de Cesaréia (em 58 a 60 AD), na costa da Palestina (Atos 23.35; 24.26-27), de modo que sua composição foi feita aproximadamente no final dos anos 50.
Desde a época de Jerônimo e João Crisóstomo, e talvez até mais cedo, Roma tem sido tradicionalmente o lugar mais frequentemente sugerido; os que defendem Éfeso, como o local da escrita da carta, inferem do fato que ela esta a 160 quilômetros de Colossos, o que parece se encaixar melhor na questão de um escravo fugitivo, do que Roma que está a quase mil quilômetros de distância; a proposta de Cesaréia é a menos defendida e cujos argumentos são menos plausíveis. Todavia, a grande e populosa capital Roma era o melhor lugar para um escravo fugitivo se camuflar na multidão.
Diante das evidências é possível concluir que Paulo escreveu a carta a Filemom de Roma, durante seu primeiro período de aprisionamento em 61 ou 62 AD, enquanto aguardava seu apelo diante de César. Um fator que reforma a tese de Roma é o fato de Lucas está com Paulo durante sua prisão (ver Cl 4.14; Filemom 24) e tudo indica que Lucas não estava com o apóstolo durante sua estadia em Éfeso. A opção de que Paulo estava em Roma quando escreve Filemom ainda é de longe a melhor. Paulo teve dois períodos de aprisionamento em Roma: 60-62 AD: Efésios, Colossenses, Filipenses e Filemom; (2) 68 AD: 2 Timóteo, seu último documento canônico escrito.
Uma Correspondência Pessoal ou Comunitária?
            Todas as correspondências contidas no cânon tornam-se comunitária, pois tem como objetivo primário a edificação da Igreja. Quando escreveu sua primeira carta aos tessalonicenses Paulo orienta que fosse lida na presença de toda congregação (1Ts 5.27) e veio a se constituir em uma prática comum e estendida a todas as demais correspondências - um bom orador público, podendo ser ou não o próprio pastor, leria a carta publicamente para toda a congregação.
Filemom era simplesmente uma carta pessoal ou deveria ser lido publicamente na comunidade? Se ficarmos apenas com o titulo “Carta à Filemom” podemos pensar que se trata de uma correspondência pessoal, todavia quando a lida com calma e observadas devidamente o vocabulário se percebe que a intenção dele é dirigir-se a um público mais amplo. Na saudação ele cita além de Filemom, Áfia, e a Arquipo e completa “e à igreja que está em tua casa” (v. 1-2). Desta forma Paulo coloca que o tema a ser abordado se relaciona diretamente a Filemom, mas implica em toda a comunidade cristã, da qual todos eles fazem parte. Deste modo Paulo conclama a todos para serem testemunhas do apelo que ele irá fazer em favor de Onésimo, bem como a resposta que será dada por Filemom, pois como líder da comunidade a atitude de dele será um referencial para os demais. Abordando esta questão R. P. Martin conclui: “essa breve epístola deve ser vista não apenas como uma carta particular de Paulo como um indivíduo... mas como uma carta apostólica sobre um assunto pessoal” (1993, p. 706). Em outras palavras, Paulo está referindo seu caso a toda a igreja e essa natureza pública também pode ser responsável por seu valor na coleção e no cânone das cartas de Paulo.
Depois de lida na igreja que funcionava na casa de Filemom, cópias foram feitas e começaram a circular por todas as igrejas localizadas em Colossos e a todas as igrejas do Império Romano. A prova definitiva de que essa pequena e singela carta, escrita por um apostolo preso, intercedendo junto a amigo em favor de um escravo fugitivo tornou-se um assunto da comunidade cristã é que ela foi incluída no cânon das Escrituras e tem sido lida e estudada em todas as igrejas ao longo da história da igreja.
Destinatários
            Na saudação o apóstolo identifica a quem se dirige: inicialmente a Filemom, a Afia, possivelmente a esposa dele e Arquipo, que muitos estudiosos concluem seja o filho do casal, ainda que não sejam conclusões indiscutíveis.
Como comentado acima, essa carta entre Paulo e Filemom deveria ser lida publicamente na comunidade, pois foram incentivados a participar da decisão de Filemom (v. 1-2).
A partir desta epístola, podemos delinear que Filemom era uma pessoa de posses, pois tinha uma casa grande o suficiente para que uma igreja funcionasse nela (v. 2). Esta casa também fornecia um quarto de hóspedes de acordo com o versículo 22. O fato de possuir um escravo, e provavelmente ainda outros, é outro indicador de que fosse abastado. Podemos deduzir que ele viveu em Colossos, pois o Onésimo mencionado no versículo 10, que é escravo de Filemom, é referido em Colossenses 4.9. Filemom se converteu ao cristianismo através do ministério de Paulo (v. 19) de maneira que se estabeleceu uma amizade duradoura e Paulo o tem em grande consideração “nosso cooperador” e "companheiro de fé" (v. 17), com toda certeza ele estava envolvido no ministério de Paulo.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/

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Referências Bibliográficas
BARCLAY, William. El Nuevo Testamento comentado. Buenos Aires (Argentina), Asociación Editorial la Aurora, 1974.
BROWN, Raymond. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004 (Coleção Bíblia e história Série Maior).
BERKHOF, Louis . New Testament Introduction. Eerdmans, 1915, Scanned and Edited Mike Randall.
BRUCE, F. F. Merece Confiança o Novo Testamento? São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1965.
CARDOSO, José Roberto C. 1 Tessalonicenses: Epístola e Peça Retórica, Fides Reformata, v.7, São Paulo, 2000, pp. 28-29.
GUNDRY, Robert H. Panorama do Novo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, 1987.
HALE, Broadus David. Introdução ao estudo do Novo Testamento. Trad. Cláudio Vital de Souza. Rio de Janeiro: JUERP, 1983.
HAWTHORNE, G. F., MARTIN, R. P., & REID, D. G. Dictionary of Paul and his letters. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1993. [p. 706].
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento - 1 e 2 Tessalonicenses, Colossenses e Filemom. São Paulo: Tradutores Ezia C. Mullins, Hope Gordon Silva, Valter G. Martins. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.
KUMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1982.

[1] F. C. Baur com seu hegelianismo extremo a considerou um documento do século II que tinha como objetivo ensinar a igreja como lidar com a escravidão, mas a argumentação dele não resiste a uma análise séria do documento paulino, que embora seja uma correspondência breve e  de caráter pessoal para um amigo, ela consta nas primeiras listas de cânones (de Marcião e do Moratório).


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